IMPOSTOS EM SÃO PAULO

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O DEDO APONTADO PARA A ESTRELA

 

um exercício de imaginação antropológica

sobre alguns momentos da educação ambiental

Carlos Rodrigues Brandão

em um tempo  antes de nós

                
Primeiro vieram os outros, antes de nós.  Outros seres da Terra, outros seres da Vida. Ma desde um primeiro alvorecer da vida na Terra, talvez os sinais de nossa tardia chegada estariam por toda a parte. Semeados entre  a morte e a vida eles estariam por toda a parte onde a vida  criasse a vida e entre um ser de um tempo e um outro, se transformasse. 
Em algum tempo antes de nós existiriam já então as flores. Alguém já pensou quando e onde pela primeira vez a cor de uma flor plantou na terra  uma faixa  de luz e água do arco-íris? Ásperas, duras flores de um tempo anterior ao dos nossos primeiros ancestrais. Já então, muitos e muitos milênios antes, a experiência multiforme da vida teria trazido das águas moventes para o chão de terra firme as sementes desses primeiros seres  das florestas e dos campos, entre  os muitos tons de marrom e verde e as cores que vão do  azul ao lilás e do vermelho ao branco e ao amarelo. Os grandes sáurios teriam desaparecido quando toda a Terra mudou por causa de algo que veio do céu. E, então, entre outros animais de grande porte o pequenino beija flor corria entre cores e odores fecundando a vida. Desde cedo a vida decretou que iriam sobreviver os mais mutáveis e sábios e, não, os mais fortes e encouraçados. Desde os primórdios, saber conviver e saber transformar-se foi o segredo da sobrevivência.
E os seres de que nós surgimos pouco a pouco,  aos poucos   aprenderam a descer das árvores e com o passar de um longo tempo e  a custa de um enorme esforço, erguerem-se sobre as patas de trás e olharam de frente o sol e o horizonte. No aprender do que cabe em milênios terão aprendido a  reservar  as mãos para ofícios até  desconhecido. E aos poucos, geração após geração, terão introduzido no mundo  uma rara e única postura do corpo. Assim,  entre os dedos o polegar veio a opor-se aos outros dedos da mão ágil e sábia, para que começassem a existir  entre os humanos os toques sutis do amor e da arte.  Somos filhos do dedo polegar oposto e muito do que aprendemos a fazer para viver e criar uma vida diferente vem deste pequeno milagre. Mas não só,  pois no corpo do que nos antecederam a arquitetura da boca  perdeu aos poucos a ferocidade de quem come rasgando pedaços de carne crua,   e se preparou para o milagre da  fala.
E os olhos dos seres de quem herdamos o rosto e a vida,   fixaram-se na frente da face e aprenderam  a  olhar e a ver  em foco uma imagem única colorida de muitas cores. Estava aberto o caminho para a atenção concentrada, o olhar inteligente e o gesto  humano  do pensamento.
Um pequeno cérebro no começo igual ao dos seres .da vida de quem somos mais próximos, os chimpanzés, os  gorilas,  e os orangotangos,  de uma geração para muitas outras, herdeiras de quem fomos aprendendo a ser,  foi  aumentando muito. E foi tornando complexas as áreas onde não apenas sentimos, mas pensamos o que sentimos e sentimos o que pensamos. E nos lembramos de sentir e pensar e ao nos lembrarmos e convivemos uns com os outros, pensamos e sentimos. E como os seres em quem a consciência reflexa tornou-se uma consciência reflexiva, trouxemos à vida e ao mundo a  fala e a busca de sentido; a pergunta e a procura de respostas; a memória e a ventura de lembrar, e o sofrimento de não esquecer;  e  o  pré-sentimento do futuro, o desejo de troca com o outro, o temor antecipado de morte, a devoção, a sensibilidade  geradora do pensamento e temperada  pelo pensamento,  e o ato de pensar tornado reflexão, e o de imaginar tornado prece ou poesia. Surgia então um primeiro ser quem sabe, e sabe que sabe, e se sente sabendo e sente o sentimento de se sentir sabendo.
A vida, consciente de si em qualquer ser-da-vida, torna-se enfim conhecedora de sua própria consciência. E ao passa de reflexa (saber e sentir) a reflexiva (saber-se sentindo e sentir-se sabendo) ela nos  saltar  da esfera do sinal à do signo e dela aos caminhos e aos abismos  do sonho e do sentimento, do sentido e do significado, do saber e da se sensibilidade, com o que criamos a linguagem e a palavra, a sociedade (onde antes havia apenas a coletividade) e a cultura (onde apenas reinava a natureza) e estabelecemos  o primado da cultura.
avós e netos no meio da noite
Quando os seres humanos já habitavam alguns  recantos da Terra primitiva. Quando eles já viviam e, grupos, em redes de parentes e em pequenas comunidades. Quando já haviam criado a fala e se falavam uns aos outros. Quando talvez já tivessem domesticado o fogo e à volta das fogueiras ouviam o silêncio da noite, e contavam mitos uns aos outros e cantavam as primeiras canções.  Quando já com palavras e gestos da vida de todos os dias, a mãe ensinava à filha algum segredo das artes do fogão ou do barro, talvez então tenha havido uma noite clara de estrelas. Então, sem antes pensar nisso e sem premeditar coisa alguma, no meio da noite um velho, um avô de um menino terá apontado para ele uma estrela mais clara do que as outras. E terá olhado o rosto do menino para saber se os olhos dele acompanhavam o seu e se haviam descoberto, entre tantas, infinitas, aquela única estrela. E com o dedo apontado para a estrela o velho avô terá pronunciado um nome: “anh... âhu... ân-hu...”. Um som, duas sílabas. E depois, descendo o dedo e a mão do céu aos ombros do menino ele terá sorrido.
E terá sabido que ali, na solidão dos dois na noite, ele criava ou re-criava um duplo milagre de quem dependemos para viver? Pois ele tomou os sons da voz e atribuiu a algo da natureza, longe, infinitamente distante, um som, um nome, um sentido, um significado. Entre todas as incontáveis estrelas do céu à noite, aquela única, ali, lá, a mais clara de luz branca, se chama “ân-hu”. Aquela e nenhuma outra.  E ele fez mais. Ele tomou por um instante o olhar do neto e a sua mente, e lhe  apontou a estrela. E lhe disse um nome. E talvez o tenha repetido duas, sete vezes. E fez o menino repetir com ele.  Ele ensinou e o menino aprendeu que uma entre todas as estrelas do céu  se chama ân-hu”.  Esse era e será o seu nome criado pela imaginação do avô ou um nome já antigo na cultura do saber da tribo.  Assim começou o que muito, muito depois veio a ser a educação com que se aprende e ensina  os saberes e mistérios dos mundos próximos, distantes e muito longe em que vivemos.   
Então foi quando um pequeno ser vivo,  muito anos depois  em alguma língua  chamado “homem”, fez da volta de uma fogueira quase apagada uma primeira escola  e se fez o primeiro professor  diante de um primeiro aluno, apontando com dois dedos da mão direita uma estrela entre as muitas do céu de julho,  e pronunciando para o neto,  pela primeira vez,  o seu primeiro nome. Como terá sido aquela noite, em que gestos de um afeto rude, no entanto cheios de uma estranha luz, mais do que a fogueira, mais do que a das estrelas do inverno fizeram o saber que alguém sabe passar dele a uma outra pessoa?  Teria acontecido aquilo assim, um dia, no meio da noite,  quando  um homem e o menino adormeceram sem de longe imaginar que haviam  inventado ali o milagre de aprender-e-ensinar para que o saber não morra,  e nem  moram  as pessoas as estrelas?
Que pássaros acordados na noite e que outros seres dos céus e que flores noturnas dessas onde só o perfume já torna tão cheio de mistérios o mundo e a vida terão assistido, uma vez e outra, separadas de centenas, de milhares  de  anos da história  que nós, os humanos, começamos a viver e a escrever na Terra,  aqueles instantes fugazes  quando, primeiro o gesto e, depois, a palavra teriam criado a façanha de inventar a troca  e a reciprocidade  com que entre os símbolos, entre os sentidos e entre os sentimentos  transformamos, uns para os outros,  os gestos da vida  em consciência e em saber?  E fizemos e fazemos isso gerando na diferença entre as muitas culturas humanas,  os mesmos motivos e os rituais semelhantes daquilo a que outros de nós, milênios mais tarde vieram a chamar de educação, entre os homens e os filhos dos homens.
quando um gesto ensina, o que se faz?
Entre gestos de saber,  poder e afeto: movimentos com as mãos, balanços do olhar alguns murmúrios de palavras e as primeiras frases curtas do pensamento, viajando entre infinitas manhãs e noites, e multiplicando muitas vezes por mil a variação dos inventários dos repertórios  das maneiras de passar de uma geração para a outra os segredos da tribo  entre avós e netas, de aldeia a aldeia, de uma casa à outra a educação invadiu o planeta e fez dos seres que nós fomos na aurora da vida humana: mulheres e homens, pais e filhos, avos e netos,  sabedores e aprendizes,  mestres e discípulos. Profetas e seguidores, professores e alunos.
Porque de então em diante, entre guerra e paz, e entre a estações do  anos e entre tempos de fome e de fartura,   os seres que somos descobriram que valem muito pouco o saber e consciência dos saber  se eles não existirem entre as pessoas de uma família, de um parentela, de um clã, de parte de uma aldeia, da aldeia inteira, de uma tribo, de um povo. Pois só existe o saber que se partilha e só serve de alguma coisa o conhecimento tornado comunidade. E então o conhecimento através do ensino e da educação  começou a ser trocado e repartido como o peixe e o pão,  como a água que se bebe e o gesto  das mãos e da voz quando a mãe dá de beber à filha. E depois ensina os  nomes e os segredos de amassar a farinha e assar a massa no forno. E com mulheres e homens das noites não lembradas da história, por toda a parte viveu a educação a sua viagem cheia de luzes e de sonhos,  mas também de horas escuras e cheias de tormento.
Ao longo do caminho sinuoso dos montes e dos  vales da  vida  humana e social, vivida e repartida como história, de que outros tantos dias e outras noites primitivas terão sido testemunhas das infinitas tramas dos mistérios com que, passo a passo,  aprendendo com a vida e a alma a experimentar  o poder e o amor  da natureza, os homens aos poucos tudo transformaram. Passo a passo e segundo as diferenças entre os seus mundos de vida e de cultura,  os homens começaram a mudar tudo ao seu redor, tocando a água e a pedra com as ferramentas das mãos e do espírito?
E transformando as coisas naturais do mundo em nomes e em objetos sociais da cultura, nós começamos a nos transformar também. Nós, os humanos, frágeis e poderosos  senhores da Terra, quando deveríamos aprender a sermos também  irmãos do Universo. Seres através de que  a vida  se alçou à   consciência. Pequenos e pelados  filhos do barro, da chama e da carne, ferreiros dos signos, escrivãos dos símbolos,  criadores do tempo, do lugar da vida social e  da cultura. Seres  que andavam sobre dois pés, com as mãos livres e os polegares opostos, com os dois olhos atentos na frente do rosto e com um cérebro que não parava de crescer e de se tornar mais e mais complexo nos lugares onde damos nomes ao que sentimos e damos sentido ao que pensamos.  Misteriosos seres  que ademais de aprenderem a viver juntos, aprenderam também a  dar um nome a tudo. E, a com este gesto tão estranho, a colocar nos seres do mundo as máscaras de seus próprios rostos.
Deram a tudo as marcas de seus nomes e de seus rostos e, assim, sobre todas as coisas assinaram  o sinal de seu poder e das  marcas de alma e sangue dos sonhos dos homens. E entre tudo: pessoas, palavras, signos, símbolos e sentimentos, à volta das fogueiras ou  dentro das chocas nas noites das grandes chuvas, tocando uns com as mãos os corpos dos outros, mulheres e homens se aprendiam-e-ensinavam, e de novo e muitas vezes  se ensinavam-e-aprendiam. E  do mesmo modo  como  aprenderam a fazer com os bens da terra e da Terra, que o trabalho caçava, colhia, criava e fiava, eis que entre todos os da aldeia e da tribo  alguns faziam circular os rituais do saber. E revelavam segredos  e apalavravam o conhecimento que repartiam, como a carne ou o pão,  entre uns e  os outros. Para que a morte não viesse tão logo e os filhos fossem mais sábios  do que os pais e os netos mais sábios do que os avós,  por muito tempo assim foi.
           “- Quando eu nasci já então os grandes peixes haviam passado”.
- E quando foi que você nasceu?
-  Eu nasci depois que os grandes peixes haviam passado!”
 Vivendo juntos sempre em alguma forma de comunidade, experimentando o mundo
e tocando com os mesmos gestos o que viram outros  antes tocarem com outras mãos os homens do mundo antes de nós aprenderam mais do que as lições que o  mundo dá, ao ser roçado com amor e fúria, e  entre os  gestos misturados,  ora de culto e  de afeto, ora de posse e de  domínio. Aprenderam mais do que as lições que a vida abre aos olhos e oferece - de todos  a melhor mestra – porque além da vida individual, mas através dela,  eles descobriram as lições vividas entre uns e outros ao redor do calor dos corpos,
Olhando com a  fome do querer  saber-fazer os dedos do artesão e as mãos do sábio, e murmurando baixinho,  dentro do espírito,  as palavras que ouviam, os que não sabiam aprendiam. E aprendiam a saber com palavras  aquilo mesmo através do que a própria vida se multiplica e transforma a sua qualidade,  ao se contemplar a si  mesma  com o  poder da mente reflexiva e do pensamento consciente, como quando a filha que aprendeu da mãe e ensina à mãe, e as duas juntas sorriam do que sabem.  Aprender-ensinar-aprender: isso que realizado vezes sem conta passa do gesto ao ensino, do ensino ao saber e  do saber à cultura.   Não somos humanos porque sabemos e somos racionais. Somos humanos porque não sabemos e  aprendemos. E, aprendendo uns com os outros, uns através dos outros,  uns para os outros e, às vezes, uns contra os outros,  aprendemos também  a criar os modos e os  ritos dos encontros por meio dos quais nos ensinamos e aprendemos.
tão grande como tudo o que é humano é a educação
Como o chão de terra do clã tribal, no mapa vivo dos sinais da aldeia, dentro das canoas, no tabuleiro  das primeiras roças de inhame ou de mandioca, seguindo atrás no caminho  os passos dos adultos nas trilhas dos matos, olhando em silêncio a mãe fazer uma esteira de palha, ou vendo como um cúmplice de um instante feliz, o pai pescando o peixe,  criamos os meios pelos quais o saber das coisas e das pessoas e o valor  da vida da tribo  circulam e tornam possível  sermos quem somos: seres que convivem. Seres que convivem porque partilham.  Seres que partilham porque não podem existir sem serem recíprocos.  Seres  que existem porque aprenderam a dar aos outros  a carne do animal morto,  a palavra da prece, a filha em casamento e o conhecimento que a todos estes gestos e a outros dá um sentido. 
Perguntas. Como terá sido que as meninas e os meninos das primeiras tribos das nações dos homens sabiam cantar as canções e dizer as preces dirigidas às flores e aos deuses de seus mundos? Como aprendiam todos com o tempo a desfiar a tela infindável dos nomes e de tudo e a decifrar a equação complicada das categorias sociais de pessoas da aldeia com quem era dado a cada um conviver?  Como aprendiam as crianças desde cedo “quem era quem”  entre todos os outros: para conviver, para evitar, para brincar, para respeitar, para caçar, para casar, para temer, para parir, para esperar, para ajudar a morrer? E como é que os mistérios da tribo eram  sabidos e  guardados antes da palavra  escrita, na efêmera flor da memória do grupo, e de uma geração à outra atravessavam o sono dos séculos? Como se aprende a cantar com a mãe uma primeira canção de crianças? E como se aprende com os velhos a pronunciar,  entre balbucios da prece e os silêncios rituais do corpo,  o nome amado e terrível dos seres sagrados? Raros nomes de amor e medo que os mitos imemoriais da aldeia inventaram entre verões e invernos, e os  seus filhos entre  ritos  dançavam  com  palmas e gritos à volta do fogo.
Como será que do adulto ao menino passou muitas vezes, em tantas eras e lugares o  poder de invocar o artifício da magia, mãe da ciência e também  sua irmã? Como foi que um alguém ensinou a um outro os outros nomes das mesmas coisas da Terra e da vida de quem cava a terra para semear, para colher e para comer?   E como as crianças aprendiam a saber o valor de cada pequeno e imenso ser da natureza de que eram parte e em que viviam as manhãs e tardes de seus dias?  Como aprendiam a reconhecer a ordem dos nomes dos espíritos da vida com que a imaginação de alunos e de mestres   povoou  por toda a parte um alfabeto sem fim de significados dados ao fundo das águas
E à  escuridão das matas, ao espaço azul e sem formas, ao sol e à lua? E também ao mapa interior das árvores, à alma dos bichos, ao caminho dos ventos errantes  e à  mensagem do deserto?
Mas, também,  como um dia alguém fez uma arapuca e ensinou a  um filho  o que havia nela de artifício e de poder? E pela primeira vez a maldade do homem prendeu ali uma ave amarela?
E daí em diante, os homens e as mulheres aprenderam também a  multiplicar,  entre o bem e o mal,  o domínio da espécie humana sobre o mundo, a vida, a terra e a Terra. E, assim, as socializar a natureza transformando-a, e transformando-se também,  nós, os humanos  aprendemos a conviver entre o  poder e o saber, entre a ciência e a sabedoria, entre o mal e o bem, entre a vida e a morte. E para sermos assim  criamos os gestos dos trabalhos e dos ritos que transformam a floresta em um deserto, e depois frutificam o deserto e o tornam de novo uma floresta, e depois o destroem, e depois, e depois...
Pois como quem de todas as coisas conhecidas sonha ser o senhor, mas tal como a criança  precisa a cada dia aprender de novo cada passo do caminho do conhecimento que habita ao mesmo tempo a sua alma e o universo, eis que o homem leu e releu pelo fio do tempo afora as lições de conviver com o outro e com  o mundo natural. Com os outros de seu mundo e de outros. E com os mundos de seus outros, e  com os outros de si mesmo, e com os mundos de si, um sempre outro, tão próximo, tão eu e tão meu estranho.
E para então transformar  ao mesmo tempo o mundo e a si mesmo (pois já então Prometeu havia dado o fogo aos homens) de acordo com as imagens dos sonhos que todas as noites tinham os magos entre momentos  iguais  e opostos de ódio e amor, as pessoas de um povo aprenderam a criar e construir, a saber e repartir,  como um  sábio-operário,  os objetos de seus dias: o arco e o cesto, a prece e a rede, o arado e o fio da semeadura, os desenhos  passados no rosto do morto, os colares e os braceletes das festas dos corpos de seus filhos.
E, assim e  de muitos modos, cada um de acordo com a sua gramática dos ofícios entre todos, desiguais e  igualados, a tribo aprendeu a fazer circularem de casa em casa os bens do fruto do trabalho, as pessoas e os símbolos dos nomes. E  de uma porta à outra,  entre as mulheres e os  homens aprenderam de novo a trocar e tornar recíprocos os gestos pelos quais doam e ganham dos outros:  peixes, pessoas e parábolas.
E em cada  comunidade humana e em sua cultura, tudo ia até onde alcançava ir a educação entre  pessoas e saberes diferentes e iguais. Pois houve um tempo em que  em  que de uma brincadeira entre primos, ou de um momento de assistir juntos ao rápido passeio de uma estrela cadente, ou ao trabalho rotineiro que três meses depois multiplica por cem uma semente, a educação corria de mão em mão no bailar de qualquer gesto. E foi quando ela não tinha ainda sequer esse nome e nem ainda  os seus donos. Porque então,  livre e  solta da amarra de possuir senhores do saber e do sentido, como as flores que todos colhem e carregam para a casa  uma  generosa educação solidária amadurecia o fruto que o saber semeava.
foi quando então ... 
Aqui e ali, por toda a parte, quando cresceram os bens e os poderes dos homens que já então plantavam cereais, construíam cidades com mulheres, acumulavam riquezas e faziam a guerra em busca de escravos, e  quando os frutos do trabalho de todos multiplicou,  para alguns apenas,  muitas vezes as cestas dos grãos de trigo, de milho ou de arroz, então começou o tempo em que a  diferença entre iguais foi se transformando na desigualdade entre diferentes. E eis que houve então o começo da  sobra não partilhada e dos restos não gastos  nas festas à volta do fogo. E com ela veio o poder de guardar o que não pertencia em comum mais a todos. Então as pequenas comunidades mudadas em cidades  que abrigavam o poder separado da vida social, aprenderam a começar a transformar o uso e a troca solidária no ganho, na  posse e no intercâmbio que gerou a moeda, o dinheiro, a ambição de ter e a usura.
E entre os homens da aldeia-cidade surgiram muros e soldados. Surgiu o moeda e o soldado da guarda que protege os bens de quem acumula a fortuna roubada do trabalho de quem semeia, planta e depois estende a mão suplicando um pedaço de pão velho, a  quem acumula sacos de trigo  que não come e bolsas de moedas que não troca. E as pessoas dos povos de então começaram a ensinar-e-aprender as suas  piores  lições. Foi quando uns tornaram-se donos do gado e coube a outros o dever de vigiá-lo. E empilharam uns os montes do mesmo  trigo dourado  que faltava na mesa de outros. E muitos teciam em teares de lágrimas a roupa  branca  para os corpos sem calos e dores de  uns poucos. E sobre o chão dos primeiros mundos divididos entre os homens, a natureza igual para todos e de quem somos parte e partilha, viu  tornarem-se uns os donos de porções de seu corpo de  terra; senhores das beiras dos rios e dos riachos;  proprietários com títulos do que antes entre cantos e danças se sabia que era de todos. Ou nem era mesmo de ninguém, porque somente a Terra é dona da terra e só as águas são senhoras das águas.
E foram alguns tornados donos das cidades e senhores das praças e do poder de dizer:
“isto é meu, é o meu domínio!”. E cercaram terras e colocaram entre um campo e o outro a maldição do arame farpado.  E cada vez mais onde havia trilhas sem portais, os senhores  fizeram grandes portas fechadas com trancas de bronze. E onde todos eram livres e diferentemente iguais, começou a reinar a desigualdade. E com ela veio a maldição que torna uniforme a diferença e faz ser servo quem era antes livre.
E então o saber dos segredos da tribo que antes dava nome às imagens e fazia mitos dos sonhos,  e era o fruto do trabalho sobre a terra,  e filho do espanto e da maravilha, dividiu-se também entre os filhos dos homens, como a terra e os seus frutos. E o que fora repartido entre todos: nomes, segredos, saberes de arte e de ciência, lembranças e memórias, aos poucos saiu da volta das fogueiras e do olhar dos primeiros magos e foi esconder-se entre  as paredes protegidas por muros e guardas.
E foi quando, tal  como o grão roubado da mesa dos pobres para o celeiro dos ricos, que uma parte poderosa do ofício e da aventura humana  de ensinar-e-aprender, dividiu-se também sob as mãos alvas de senhores de sedas, esquecidos, como os mestres de quem eram donos, de segurar com o peso bom dos braços os dois varais do arado e desenhar sobre o corpo da terra a esperança do grão  transformado em vida.
De quem são as estrelas? De quem são as figuras que a alma dos homens faz dela?
De quem são os seus nomes: “Ân-hu”, “Antares”, “Capela”, Aldebarã”, “Betelguese”? De quem é o saber que das estrelas e seus nomes fez deuses e lendas, heróis, ou o saber da ciência, do destino e dos  caminhos sobre os mares nas viagens a outras terras? Em nome de quem e do que os homens dividiram  o saber em saberes, e deram  a cada um caminho e um destino desiguais? E deram a alguns o segredo de um poder diverso do que houvera antes entre diferentes, tornados agora desiguais, também por causa do que eles podem aprender, e por causa do que eles devem e não devem conhecer  para  saber e saber para pensar?
Como é que foram separados por muros os próprios nomes das coisas da vida, e foi dado a uns o poder de dizê-los e, aos outros o dever de ouvir em silêncio? Ou  obrigados a falar sem cessar, desde que “falar” seja repetir sem refletir as palavras  que não eram as suas e os saberes que quando não lhes mentem sobre a vida que vivem,  não lhes ensinam coisa alguma?  E com que direito alguns poucos submetem mulheres e homens, velhos e crianças  ao poder  de se fazerem  servos diante de outros, tornados senhores, ou  os “do povo”, diante dos “nobres”, ou  ainda e os selvagens,m primitivos e  colonizados diante dos que se apresentam, como civilizados, cultos e colonizadores?  E como e quando foram inventados os-que-não-sabem, diante do que  agora falam e escrevem como os senhores-do-saber?
Acaso esquecemos ...
Acaso esquecemos, educadores e professores que somos, essas lições da história? Terão elas existido antes, em um mau momento do passado, ou estão à nossa volta, agora, aqui? Olhamos em nós e ao nosso redor e vemos  com alguma clareza os despojos do que foi um dia o saber-de-todos?  Ou fizemos de tudo o que os nossos antepassados e nós perdemos as  nossas  piedosas fábulas, os nossos  mitos e os contos de fadas de nossas lições às crianças?
Por que então tudo foi como se, de repente,  fosses escondida e guardada com segredos entre templos e palácios   uma antiga  canção fácil. Uma dessas cantigas um dia surgidas no largo do centro da aldeia sem que se saiba de quem ou quando,  e que as pessoas, juntas, sabiam entoar com vozes doces e flautas de madeira,  e dançando lembranças cantavam as estórias de sua própria história.  Roubada de nossos antigos e de nós mesmos, e abertas como um livro secreto apenas onde sete iniciados vestidos de roupas brancas de linho se reunissem para ler e saber. Saberes, valores, mitos e crenças, ciências e sentidos da vida e do destino  que foram antes sabidas e entoadas por  setenta pastores com flautas e violas, e que agora apenas uns poucos, escolhidos a dedo pelos senhores do poder soubessem tocá-la acompanhados de  flautas de ouro. E guardasse o que sabem quando cantam para sete senhores vestidos de sedas,  onde antes haviam setecentos mil vestidos, como nós,  de roupas rústicas e corações solidários. Eles, nós, os que aos poucos foram sendo deixados do lado de fora, separados por muros e silêncios de pedra.
Sete senhores de Tebas – e quantas houve! E quantas há! – que fazem a festa, e pagam aos músicos depois de haverem separado o trigo da palha, e o saber do poder do saber do trabalho e os hinos dos reis dos cantos dos escravos, e os instrumentos de ouro dos de madeira e couro, e aqueles que trajam as vestes brancas e livram a mão do arado, dos que rasgam nas ferragens do arado as roupas  sujas de terra e aos farrapos.  E aqueles que guardam para eles e os seus emissários o saber que pretende dizer a verdade da vida e do destino, da Terra e do Universo, depois de haverem na trilha dos tempos os sabedores legítimos, da multidão dos muitos que são aqueles a quem nos dirigimos quando sonhamos ensinar-e-aprender, e somos nós.
desigual, dividida, ela persiste
Tão grande quanto tudo o que é humano é a educação. E também tão corriqueira, tão estranha e tão terrível. Depois de tantos anos e de tantos furtos e mentiras ela está viva, como os homens, a história e as culturas dos povos da erra.  E sabemos que ela não existe somente na escola e no sistema de poder sobre ela, mas entre nós e esparramada pelos recantos e caminhos da  vida. E depois de tanto, todas as teorias sobre ela, e mais os múltiplos  métodos e os artifícios não a tornaram e à sua pequena infinita trama de trocas entre as pessoas muito diferentes do que, múltipla, diversa, ela tem sido entre os povos e o povo, pela  vida afora.
Entre professores-e-alunos,  entre educandos-e-educadores, como também e ainda entre avós-e-netos,  nada existe na educação  de eterno ou de absoluto. E nela como em toda a vida dos seres humanos e dos povos da Terra,  tudo muda  sempre e  sempre de um modo ou de outro permanece. E nada nela foi a criação dos deuses que  talvez um dia tenham criado as flores e os passarinhos.  Nós, criaturas e criadores de Prometeu descobrimos o seu nome e   acendemos um dia o seu fogo. Pois como tudo o que o homem precisou aprender para ser e cria a educação é filha do trabalho e é, ela mesma, um trabalho vivido pelos e entre  homens e mulheres.
Um trabalho em apenas alguma coisa mais difícil do que outros,
Porque  o trabalho de ensinar e a vocação de aprender    foram  gerados  entre sons e sentido, emoções, saberes, significados e palavras,  sobre a matéria de seu próprio espírito. E como um campo de milho ou de feijão, a educação vive do que semeamos e cresce através do cuidado que lhe dedicamos. E em sua verdadeira vocação ela  existe apenas onde as mulheres e os homens se reúnem e trocam o que são, o que vivem, o que sabem e o que sonham. E compartem seus saberes livres e  iguais, à volta da fogueira.
Por isso mesmo, quando por meio da educação  as pessoas transformam as regras das trocas do trabalho e as leis da repartição dos seus frutos entre pessoas, grupos humanos, comunidades ou mesmo povos,  a educação muda os seus nomes e troca  as suas  roupas. E varia de um sistema a outro o próprio trabalho de que é feita. E aqueles que pretenderam obrigar o educador a ser menos humano do que os avós de um tempo muito anterior, quando os homens estavam ainda aprendendo a dar os primeiros nomes às estrelas,  roubam da educação o que ela sonha ser, e transformam o educar em instruir, o formar em capacitar, o aprender em treinar e o saber para viver e compartir em um  conhecimento utilitário para  sobreviver e competir.
O educador que ensina falando da vida, da natureza e da vocação dos seres humanos para com uma e a outra,  sabe que o seu trabalho é um ofício como o de quem lavra a terra ou  como o de quem escreve um poema.  E ele sabe que o seu ofício instrui o que se sabe sem nunca esquecer de  ensinar  o que se cria com e entre as outras pessoas,  ao se aprender com elas e entre elas. E ele sabe que a mesma luz que clareia salas escurecidas é também  um fogo vivo que incendeia no meio da noite o coração e o mundo.
Pois entre ensinar-e-aprender as palavras trocadas geram as idéias com que as pessoas pensam na medida em que re-aprendem a serem livres. Isto é, a pensarem os seus pensamentos e dizerem entre elas as suas palavras verdadeiras.  As idéias que as pessoas sabem e trocam entre elas  não transformam o  mundo. As idéias  que as pessoas trocam entre elas e com que aprendem e sabem o que não sabiam, transformam as pessoas que aprendem-e-ensinam. E as pessoas transformam o mundo.
As pessoas transformam o mundo!
Emissário da palavra,  acendedor do fogo do saber e  buscador sem tréguas  do diálogo, o educador deve ser, em sal dimensão de vida e de trabalho, nada menos do que um participante da aventura de criar mundos novos, O educador não é um artesão parado num tempo e n~~ao é quem repete, mas quem cria ao saber e ensinar. Por causa de um sonho que tem todos os dias
ele não pode esquecer todos os dias as tarefas de seu tempo. E nada do que é humano, nele, em cada dia, lhe é indiferente. Podemos parecer sermos hoje menos do que fomos ontem, mas nós  sabemos que somos hoje mais indispensáveis do que nunca. Porque mais do que antes trata-se de salvar o homem de si mesmo e trata-se de re-ensina-lo  a sentir-se e se pensar não como um senhor do Mundo, mas como um irmão do Universo. Por isso somos como pontes, mensageiros do que foi lembrado entre os humanos e não pode ser esquecido.
Se não podemos ser agora os senhores  solidários de nossa própria fala, sabemos que é possível recriar com o outro as palavras perdidas entre os que perderam a voz, mas não a memória da fala. Entre todas e todos, e não apenas  os escolhidos, o trabalho do educador serve ao reencontro do homem com a sua origem.  E não somente por um dever de ofício é urgente não esquecermos
Que se não tomarmos,  com e entre eles, em suas e em nossas mãos o leme do navio da educação outros o farão por nós e contra nós. E em direção oposta à do horizonte da aurora dos tempos que hão de vir, porque, junto, nós o faremos chegar. O  horizonte distante e possível  do tempo de um mundo fraterno de homens livres, onde todos possam ser, desarmados, irmanados, solidários,  ao mesmo tempo os educados que aprendem e os sábios que nos ensinam, como as pessoas  livres do Mundo verde, vivo e humano que aprenderam a criar. 

Nenhum comentário: