um exercício de imaginação antropológica
sobre alguns momentos da educação
ambiental
Carlos Rodrigues Brandão
em um tempo antes de nós
Primeiro vieram os outros,
antes de nós. Outros seres da Terra,
outros seres da Vida. Ma desde um primeiro alvorecer da vida na Terra, talvez
os sinais de nossa tardia chegada estariam por toda a parte. Semeados
entre a morte e a vida eles estariam por
toda a parte onde a vida criasse a vida
e entre um ser de um tempo e um outro, se transformasse.
Em algum tempo antes de nós existiriam já
então as flores. Alguém já pensou quando e onde pela primeira vez a cor de uma
flor plantou na terra uma faixa de luz e água do arco-íris? Ásperas, duras
flores de um tempo anterior ao dos nossos primeiros ancestrais. Já então,
muitos e muitos milênios antes, a experiência multiforme da vida teria trazido
das águas moventes para o chão de terra firme as sementes desses primeiros
seres das florestas e dos campos,
entre os muitos tons de marrom e verde e
as cores que vão do azul ao lilás e do
vermelho ao branco e ao amarelo. Os grandes sáurios teriam desaparecido quando
toda a Terra mudou por causa de algo que veio do céu. E, então, entre outros
animais de grande porte o pequenino beija flor corria entre cores e odores
fecundando a vida. Desde cedo a vida decretou que iriam sobreviver os mais
mutáveis e sábios e, não, os mais fortes e encouraçados. Desde os primórdios,
saber conviver e saber transformar-se foi o segredo da sobrevivência.
E
os seres de que nós surgimos pouco a pouco,
aos poucos aprenderam a descer
das árvores e com o passar de um longo tempo e
a custa de um enorme esforço, erguerem-se sobre as patas de trás e
olharam de frente o sol e o horizonte. No aprender do que cabe em milênios
terão aprendido a reservar as mãos para ofícios até desconhecido. E aos poucos, geração após
geração, terão introduzido no mundo uma
rara e única postura do corpo. Assim,
entre os dedos o polegar veio a opor-se aos outros dedos da mão ágil e
sábia, para que começassem a existir
entre os humanos os toques sutis do amor e da arte. Somos filhos do dedo polegar oposto e muito
do que aprendemos a fazer para viver e criar uma vida diferente vem deste
pequeno milagre. Mas não só, pois no
corpo do que nos antecederam a arquitetura da boca perdeu aos poucos a ferocidade de quem come
rasgando pedaços de carne crua, e se
preparou para o milagre da fala.
E os
olhos dos seres de quem herdamos o rosto e a vida, fixaram-se na frente da face e
aprenderam a olhar e a ver
em foco uma imagem única colorida de muitas cores. Estava aberto o
caminho para a atenção concentrada, o olhar inteligente e o gesto humano
do pensamento.
Um pequeno
cérebro no começo igual ao dos seres .da vida de quem somos mais próximos, os
chimpanzés, os gorilas, e os orangotangos, de uma geração para muitas outras, herdeiras
de quem fomos aprendendo a ser, foi aumentando muito. E foi tornando complexas as
áreas onde não apenas sentimos, mas pensamos o que sentimos e sentimos o que
pensamos. E nos lembramos de sentir e pensar e ao nos lembrarmos e convivemos
uns com os outros, pensamos e sentimos. E como os seres em quem a consciência
reflexa tornou-se uma consciência reflexiva, trouxemos à vida e ao mundo a fala e a busca de sentido; a pergunta e a
procura de respostas; a memória e a ventura de lembrar, e o sofrimento de não
esquecer; e o
pré-sentimento do futuro, o desejo de troca com o outro, o temor
antecipado de morte, a devoção, a sensibilidade
geradora do pensamento e temperada
pelo pensamento, e o ato de
pensar tornado reflexão, e o de imaginar tornado prece ou poesia. Surgia então
um primeiro ser quem sabe, e sabe que sabe, e se sente sabendo e sente o
sentimento de se sentir sabendo.
A
vida, consciente de si em qualquer ser-da-vida, torna-se enfim conhecedora de
sua própria consciência. E ao passa de reflexa (saber e sentir) a reflexiva
(saber-se sentindo e sentir-se sabendo) ela nos
saltar da esfera do sinal à do
signo e dela aos caminhos e aos abismos
do sonho e do sentimento, do sentido e do significado, do saber e da se
sensibilidade, com o que criamos a linguagem e a palavra, a sociedade (onde
antes havia apenas a coletividade) e a cultura (onde apenas reinava a natureza)
e estabelecemos o primado da cultura.
avós
e netos no meio da noite
Quando os
seres humanos já habitavam alguns
recantos da Terra primitiva. Quando eles já viviam e, grupos, em redes
de parentes e em pequenas comunidades. Quando já haviam criado a fala e se
falavam uns aos outros. Quando talvez já tivessem domesticado o fogo e à volta
das fogueiras ouviam o silêncio da noite, e contavam mitos uns aos outros e
cantavam as primeiras canções. Quando já
com palavras e gestos da vida de todos os dias, a mãe ensinava à filha algum
segredo das artes do fogão ou do barro, talvez então tenha havido uma noite
clara de estrelas. Então, sem antes pensar nisso e sem premeditar coisa alguma,
no meio da noite um velho, um avô de um menino terá apontado para ele uma
estrela mais clara do que as outras. E terá olhado o rosto do menino para saber
se os olhos dele acompanhavam o seu e se haviam descoberto, entre tantas,
infinitas, aquela única estrela. E com o dedo apontado para a estrela o velho
avô terá pronunciado um nome: “anh... âhu... ân-hu...”. Um som, duas sílabas. E
depois, descendo o dedo e a mão do céu aos ombros do menino ele terá sorrido.
E
terá sabido que ali, na solidão dos dois na noite, ele criava ou re-criava um
duplo milagre de quem dependemos para viver? Pois ele tomou os sons da voz e
atribuiu a algo da natureza, longe, infinitamente distante, um som, um nome, um
sentido, um significado. Entre todas as incontáveis estrelas do céu à noite,
aquela única, ali, lá, a mais clara de luz branca, se chama “ân-hu”. Aquela e nenhuma
outra. E ele fez mais. Ele tomou por um
instante o olhar do neto e a sua mente, e lhe
apontou a estrela. E lhe disse um nome. E talvez o tenha repetido duas,
sete vezes. E fez o menino repetir com ele.
Ele ensinou e o menino aprendeu que uma entre todas as estrelas do
céu se chama ân-hu”. Esse era e será o seu nome criado pela
imaginação do avô ou um nome já antigo na cultura do saber da tribo. Assim começou o que muito, muito depois veio
a ser a educação com que se aprende e ensina
os saberes e mistérios dos mundos próximos, distantes e muito longe em
que vivemos.
Então
foi quando um pequeno ser vivo, muito
anos depois em alguma língua chamado “homem”, fez da volta de uma fogueira
quase apagada uma primeira escola e se
fez o primeiro professor diante de um
primeiro aluno, apontando com dois dedos da mão direita uma estrela entre as
muitas do céu de julho, e pronunciando
para o neto, pela primeira vez, o seu primeiro nome. Como terá sido aquela
noite, em que gestos de um afeto rude, no entanto cheios de uma estranha luz,
mais do que a fogueira, mais do que a das estrelas do inverno fizeram o saber
que alguém sabe passar dele a uma outra pessoa?
Teria acontecido aquilo assim, um dia, no meio da noite, quando
um homem e o menino adormeceram sem de longe imaginar que haviam inventado ali o milagre de aprender-e-ensinar
para que o saber não morra, e nem moram
as pessoas as estrelas?
Que
pássaros acordados na noite e que outros seres dos céus e que flores noturnas
dessas onde só o perfume já torna tão cheio de mistérios o mundo e a vida terão
assistido, uma vez e outra, separadas de centenas, de milhares de
anos da história que nós, os
humanos, começamos a viver e a escrever na Terra, aqueles instantes fugazes quando, primeiro o gesto e, depois, a palavra
teriam criado a façanha de inventar a troca
e a reciprocidade com que entre
os símbolos, entre os sentidos e entre os sentimentos transformamos, uns para os outros, os gestos da vida em consciência e em saber? E fizemos e fazemos isso gerando na diferença
entre as muitas culturas humanas, os
mesmos motivos e os rituais semelhantes daquilo a que outros de nós, milênios
mais tarde vieram a chamar de educação,
entre os homens e os filhos dos homens.
quando um gesto ensina, o que se faz?
Entre
gestos de saber, poder e afeto:
movimentos com as mãos, balanços do olhar alguns murmúrios de palavras e as
primeiras frases curtas do pensamento, viajando entre infinitas manhãs e
noites, e multiplicando muitas vezes por mil a variação dos inventários dos
repertórios das maneiras de passar de
uma geração para a outra os segredos da tribo
entre avós e netas, de aldeia a aldeia, de uma casa à outra a educação
invadiu o planeta e fez dos seres que nós fomos na aurora da vida humana: mulheres
e homens, pais e filhos, avos e netos,
sabedores e aprendizes, mestres e
discípulos. Profetas e seguidores, professores e alunos.
Porque
de então em diante, entre guerra e paz, e entre a estações do anos e entre tempos de fome e de
fartura, os seres que somos descobriram
que valem muito pouco o saber e consciência dos saber se eles não existirem entre as pessoas de uma
família, de um parentela, de um clã, de parte de uma aldeia, da aldeia inteira,
de uma tribo, de um povo. Pois só existe o saber que se partilha e só serve de
alguma coisa o conhecimento tornado comunidade. E então o conhecimento através
do ensino e da educação começou a ser
trocado e repartido como o peixe e o pão,
como a água que se bebe e o gesto
das mãos e da voz quando a mãe dá de beber à filha. E depois ensina
os nomes e os segredos de amassar a
farinha e assar a massa no forno. E com mulheres e homens das noites não
lembradas da história, por toda a parte viveu a educação a sua viagem
cheia de luzes e de sonhos, mas também
de horas escuras e cheias de tormento.
Ao longo do
caminho sinuoso dos montes e dos vales
da vida
humana e social, vivida e repartida como história, de que outros tantos
dias e outras noites primitivas terão sido testemunhas das infinitas tramas dos
mistérios com que, passo a passo,
aprendendo com a vida e a alma a experimentar o poder e o amor da natureza, os homens aos poucos tudo
transformaram. Passo a passo e segundo as diferenças entre os seus mundos de
vida e de cultura, os homens começaram a
mudar tudo ao seu redor, tocando a água e a pedra com as ferramentas das mãos e
do espírito?
E
transformando as coisas naturais do mundo em nomes e em objetos sociais da
cultura, nós começamos a nos transformar também. Nós, os humanos, frágeis e
poderosos senhores da Terra, quando
deveríamos aprender a sermos também
irmãos do Universo. Seres através de que
a vida se alçou à consciência. Pequenos e pelados filhos do barro, da chama e da carne,
ferreiros dos signos, escrivãos dos símbolos,
criadores do tempo, do lugar da vida social e da cultura. Seres que andavam sobre dois pés, com as mãos
livres e os polegares opostos, com os dois olhos atentos na frente do rosto e com
um cérebro que não parava de crescer e de se tornar mais e mais complexo nos
lugares onde damos nomes ao que sentimos e damos sentido ao que pensamos. Misteriosos seres que ademais de aprenderem a viver juntos,
aprenderam também a dar um nome a tudo.
E, a com este gesto tão estranho, a colocar nos seres do mundo as máscaras de
seus próprios rostos.
Deram
a tudo as marcas de seus nomes e de seus rostos e, assim, sobre todas as coisas
assinaram o sinal de seu poder e
das marcas de alma e sangue dos sonhos
dos homens. E entre tudo: pessoas, palavras, signos, símbolos e sentimentos, à
volta das fogueiras ou dentro das chocas
nas noites das grandes chuvas, tocando uns com as mãos os corpos dos outros,
mulheres e homens se aprendiam-e-ensinavam, e de novo e muitas vezes se ensinavam-e-aprendiam. E do mesmo modo
como aprenderam a fazer com os
bens da terra e da Terra, que o trabalho caçava, colhia, criava e fiava, eis
que entre todos os da aldeia e da tribo
alguns faziam circular os rituais do saber. E revelavam segredos e apalavravam o conhecimento que repartiam,
como a carne ou o pão, entre uns e os outros. Para que a morte não viesse tão
logo e os filhos fossem mais sábios do
que os pais e os netos mais sábios do que os avós, por muito tempo assim foi.
“- Quando eu nasci já então os grandes peixes
haviam passado”.
- E quando foi que você nasceu?
- Eu nasci depois
que os grandes peixes haviam passado!”
Vivendo
juntos sempre em alguma forma de comunidade, experimentando o mundo
e
tocando com os mesmos gestos o que viram outros
antes tocarem com outras mãos os homens do mundo antes de nós aprenderam
mais do que as lições que o mundo dá, ao
ser roçado com amor e fúria, e entre
os gestos misturados, ora de culto e de afeto, ora de posse e de domínio. Aprenderam mais do que as lições que
a vida abre aos olhos e oferece - de todos a melhor mestra – porque além da vida
individual, mas através dela, eles
descobriram as lições vividas entre uns e outros ao redor do calor dos corpos,
Olhando com
a fome do querer saber-fazer os dedos do artesão e as mãos do
sábio, e murmurando baixinho, dentro do
espírito, as palavras que ouviam, os que
não sabiam aprendiam. E aprendiam a saber com palavras aquilo mesmo através do que a própria vida se
multiplica e transforma a sua qualidade,
ao se contemplar a si mesma com o
poder da mente reflexiva e do pensamento consciente, como quando a filha
que aprendeu da mãe e ensina à mãe, e as duas juntas sorriam do que sabem. Aprender-ensinar-aprender: isso que realizado
vezes sem conta passa do gesto ao ensino, do ensino ao saber e do saber à cultura. Não somos humanos porque sabemos e somos
racionais. Somos humanos porque não sabemos e
aprendemos. E, aprendendo uns com os outros, uns através dos outros, uns para os outros e, às vezes, uns contra os
outros, aprendemos também a criar os modos e os ritos dos encontros por meio dos quais nos
ensinamos e aprendemos.
tão
grande como tudo o que é humano é a educação
Como
o chão de terra do clã tribal, no mapa vivo dos sinais da aldeia, dentro das
canoas, no tabuleiro das primeiras roças
de inhame ou de mandioca, seguindo atrás no caminho os passos dos adultos nas trilhas dos matos,
olhando em silêncio a mãe fazer uma esteira de palha, ou vendo como um cúmplice
de um instante feliz, o pai pescando o peixe,
criamos os meios pelos quais o saber das coisas e das pessoas e o
valor da vida da tribo circulam e tornam possível sermos quem somos: seres que convivem. Seres que
convivem porque partilham. Seres que
partilham porque não podem existir sem serem recíprocos. Seres
que existem porque aprenderam a dar aos outros a carne do animal morto, a palavra da prece, a filha em casamento e o
conhecimento que a todos estes gestos e a outros dá um sentido.
Perguntas.
Como terá sido que as meninas e os meninos das primeiras tribos das nações dos
homens sabiam cantar as canções e dizer as preces dirigidas às flores e aos
deuses de seus mundos? Como aprendiam todos com o tempo a desfiar a tela
infindável dos nomes e de tudo e a decifrar a equação complicada das categorias
sociais de pessoas da aldeia com quem era dado a cada um conviver? Como aprendiam as crianças desde cedo “quem
era quem” entre todos os outros: para
conviver, para evitar, para brincar, para respeitar, para caçar, para casar,
para temer, para parir, para esperar, para ajudar a morrer? E como é que os
mistérios da tribo eram sabidos e guardados antes da palavra escrita, na efêmera flor da memória do grupo,
e de uma geração à outra atravessavam o sono dos séculos? Como se aprende a
cantar com a mãe uma primeira canção de crianças? E como se aprende com os
velhos a pronunciar, entre balbucios da
prece e os silêncios rituais do corpo, o
nome amado e terrível dos seres sagrados? Raros nomes de amor e medo que os
mitos imemoriais da aldeia inventaram entre verões e invernos, e os seus filhos entre ritos
dançavam com palmas e gritos à volta do fogo.
Como será
que do adulto ao menino passou muitas vezes, em tantas eras e lugares o poder de invocar o artifício da magia, mãe da
ciência e também sua irmã? Como foi que
um alguém ensinou a um outro os outros nomes das mesmas coisas da Terra e da
vida de quem cava a terra para semear, para colher e para comer? E como as crianças aprendiam a saber o valor
de cada pequeno e imenso ser da natureza de que eram parte e em que viviam as
manhãs e tardes de seus dias? Como
aprendiam a reconhecer a ordem dos nomes dos espíritos da vida com que a
imaginação de alunos e de mestres
povoou por toda a parte um
alfabeto sem fim de significados dados ao fundo das águas
E
à escuridão das matas, ao espaço azul e
sem formas, ao sol e à lua? E também ao mapa interior das árvores, à alma dos
bichos, ao caminho dos ventos errantes e
à mensagem do deserto?
Mas, também,
como um dia alguém fez uma arapuca e ensinou a um filho
o que havia nela de artifício e de poder? E pela primeira vez a maldade
do homem prendeu ali uma ave amarela?
E daí
em diante, os homens e as mulheres aprenderam também a multiplicar,
entre o bem e o mal, o domínio da
espécie humana sobre o mundo, a vida, a terra e a Terra. E, assim, as
socializar a natureza transformando-a, e transformando-se também, nós, os humanos aprendemos a conviver entre o poder e o saber, entre a ciência e a
sabedoria, entre o mal e o bem, entre a vida e a morte. E para sermos
assim criamos os gestos dos trabalhos e
dos ritos que transformam a floresta em um deserto, e depois frutificam o
deserto e o tornam de novo uma floresta, e depois o destroem, e depois, e
depois...
Pois como quem de todas as coisas conhecidas
sonha ser o senhor, mas tal como a criança
precisa a cada dia aprender de novo cada passo do caminho do
conhecimento que habita ao mesmo tempo a sua alma e o universo, eis que o homem
leu e releu pelo fio do tempo afora as lições de conviver com o outro e
com o mundo natural. Com os outros de
seu mundo e de outros. E com os mundos de seus outros, e com os outros de si mesmo, e com os mundos de
si, um sempre outro, tão próximo, tão eu e tão meu estranho.
E
para então transformar ao mesmo tempo o
mundo e a si mesmo (pois já então Prometeu havia dado o fogo aos homens) de
acordo com as imagens dos sonhos que todas as noites tinham os magos entre
momentos iguais e opostos de ódio e amor, as pessoas de um
povo aprenderam a criar e construir, a saber e repartir, como um
sábio-operário, os objetos de
seus dias: o arco e o cesto, a prece e a rede, o arado e o fio da semeadura, os
desenhos passados no rosto do morto, os
colares e os braceletes das festas dos corpos de seus filhos.
E,
assim e de muitos modos, cada um de
acordo com a sua gramática dos ofícios entre todos, desiguais e igualados, a tribo aprendeu a fazer
circularem de casa em casa os bens do fruto do trabalho, as pessoas e os
símbolos dos nomes. E de uma porta à
outra, entre as mulheres e os homens aprenderam de novo a trocar e tornar
recíprocos os gestos pelos quais doam e ganham dos outros: peixes, pessoas e parábolas.
E em cada
comunidade humana e em sua cultura, tudo ia até onde alcançava ir a educação
entre pessoas e saberes diferentes e
iguais. Pois houve um tempo em que
em que de uma brincadeira entre
primos, ou de um momento de assistir juntos ao rápido passeio de uma estrela
cadente, ou ao trabalho rotineiro que três meses depois multiplica por cem uma
semente, a educação corria de mão em mão no bailar de qualquer gesto. E
foi quando ela não tinha ainda sequer esse nome e nem ainda os seus donos. Porque então, livre e
solta da amarra de possuir senhores do saber e do sentido, como as
flores que todos colhem e carregam para a casa
uma generosa educação solidária
amadurecia o fruto que o saber semeava.
foi quando então
...
Aqui e ali, por toda a parte, quando
cresceram os bens e os poderes dos homens que já então plantavam cereais,
construíam cidades com mulheres, acumulavam riquezas e faziam a guerra em busca
de escravos, e quando os frutos do
trabalho de todos multiplicou, para
alguns apenas, muitas vezes as cestas
dos grãos de trigo, de milho ou de arroz, então começou o tempo em que a diferença entre iguais foi se transformando
na desigualdade entre diferentes. E eis que houve então o começo da sobra não partilhada e dos restos não
gastos nas festas à volta do fogo. E com
ela veio o poder de guardar o que não pertencia em comum mais a todos. Então as
pequenas comunidades mudadas em cidades
que abrigavam o poder separado da vida social, aprenderam a começar a
transformar o uso e a troca solidária no ganho, na posse e no intercâmbio que gerou a moeda, o
dinheiro, a ambição de ter e a usura.
E entre os homens da aldeia-cidade surgiram
muros e soldados. Surgiu o moeda e o soldado da guarda que protege os bens de
quem acumula a fortuna roubada do trabalho de quem semeia, planta e depois
estende a mão suplicando um pedaço de pão velho, a quem acumula sacos de trigo que não come e bolsas de moedas que não
troca. E as pessoas dos povos de então começaram a ensinar-e-aprender as
suas piores lições. Foi quando uns tornaram-se donos do
gado e coube a outros o dever de vigiá-lo. E empilharam uns os montes do
mesmo trigo dourado que faltava na mesa de outros. E muitos
teciam em teares de lágrimas a roupa
branca para os corpos sem calos e
dores de uns poucos. E sobre o chão dos
primeiros mundos divididos entre os homens, a natureza igual para todos e de
quem somos parte e partilha, viu tornarem-se
uns os donos de porções de seu corpo de
terra; senhores das beiras dos rios e dos riachos; proprietários com títulos do que antes entre
cantos e danças se sabia que era de todos. Ou nem era mesmo de ninguém, porque
somente a Terra é dona da terra e só as águas são senhoras das águas.
E foram alguns tornados donos das cidades e
senhores das praças e do poder de dizer:
“isto é meu,
é o meu domínio!”. E cercaram terras e colocaram entre um campo e o outro a
maldição do arame farpado. E cada vez
mais onde havia trilhas sem portais, os senhores fizeram grandes portas fechadas com trancas
de bronze. E onde todos eram livres e diferentemente iguais, começou a reinar a
desigualdade. E com ela veio a maldição que torna uniforme a diferença e faz
ser servo quem era antes livre.
E então o saber dos segredos da tribo que
antes dava nome às imagens e fazia mitos dos sonhos, e era o fruto do trabalho sobre a terra, e filho do espanto e da maravilha, dividiu-se
também entre os filhos dos homens, como a terra e os seus frutos. E o que fora
repartido entre todos: nomes, segredos, saberes de arte e de ciência,
lembranças e memórias, aos poucos saiu da volta das fogueiras e do olhar dos
primeiros magos e foi esconder-se entre as
paredes protegidas por muros e guardas.
E
foi quando, tal como o grão roubado da
mesa dos pobres para o celeiro dos ricos, que uma parte poderosa do ofício e da
aventura humana de ensinar-e-aprender,
dividiu-se também sob as mãos alvas de senhores de sedas, esquecidos, como os
mestres de quem eram donos, de segurar com o peso bom dos braços os dois varais
do arado e desenhar sobre o corpo da terra a esperança do grão transformado em vida.
De
quem são as estrelas? De quem são as figuras que a alma dos homens faz dela?
De quem são
os seus nomes: “Ân-hu”, “Antares”, “Capela”, Aldebarã”, “Betelguese”? De quem é
o saber que das estrelas e seus nomes fez deuses e lendas, heróis, ou o saber
da ciência, do destino e dos caminhos
sobre os mares nas viagens a outras terras? Em nome de quem e do que os homens
dividiram o saber em saberes, e
deram a cada um caminho e um destino
desiguais? E deram a alguns o segredo de um poder diverso do que houvera antes
entre diferentes, tornados agora desiguais, também por causa do que eles podem
aprender, e por causa do que eles devem e não devem conhecer para
saber e saber para pensar?
Como é que foram separados por muros os próprios nomes
das coisas da vida, e foi dado a uns o poder de dizê-los e, aos outros o dever
de ouvir em silêncio? Ou obrigados a
falar sem cessar, desde que “falar” seja repetir sem refletir as palavras que não eram as suas e os saberes que quando
não lhes mentem sobre a vida que vivem,
não lhes ensinam coisa alguma? E
com que direito alguns poucos submetem mulheres e homens, velhos e
crianças ao poder de se fazerem
servos diante de outros, tornados senhores, ou os “do povo”, diante dos “nobres”, ou ainda e os selvagens,m primitivos e colonizados diante dos que se apresentam,
como civilizados, cultos e colonizadores?
E como e quando foram inventados os-que-não-sabem, diante do que agora falam e escrevem como os
senhores-do-saber?
Acaso esquecemos
...
Acaso
esquecemos, educadores e professores que somos, essas lições da história? Terão
elas existido antes, em um mau momento do passado, ou estão à nossa volta,
agora, aqui? Olhamos em nós e ao nosso redor e vemos com alguma clareza os despojos do que foi um
dia o saber-de-todos? Ou fizemos de tudo
o que os nossos antepassados e nós perdemos as
nossas piedosas fábulas, os
nossos mitos e os contos de fadas de
nossas lições às crianças?
Por
que então tudo foi como se, de repente,
fosses escondida e guardada com segredos entre templos e palácios uma antiga
canção fácil. Uma dessas cantigas um dia surgidas no largo do centro da
aldeia sem que se saiba de quem ou quando,
e que as pessoas, juntas, sabiam entoar com vozes doces e flautas de
madeira, e dançando lembranças cantavam
as estórias de sua própria história.
Roubada de nossos antigos e de nós mesmos, e abertas como um livro
secreto apenas onde sete iniciados vestidos de roupas brancas de linho se
reunissem para ler e saber. Saberes, valores, mitos e crenças, ciências e
sentidos da vida e do destino que foram
antes sabidas e entoadas por setenta
pastores com flautas e violas, e que agora apenas uns poucos, escolhidos a dedo
pelos senhores do poder soubessem tocá-la acompanhados de flautas de ouro. E guardasse o que sabem
quando cantam para sete senhores vestidos de sedas, onde antes haviam setecentos mil vestidos,
como nós, de roupas rústicas e corações
solidários. Eles, nós, os que aos poucos foram sendo deixados do lado de fora,
separados por muros e silêncios de pedra.
Sete
senhores de Tebas – e quantas houve! E quantas há! – que fazem a festa, e pagam
aos músicos depois de haverem separado o trigo da palha, e o saber do poder do
saber do trabalho e os hinos dos reis dos cantos dos escravos, e os
instrumentos de ouro dos de madeira e couro, e aqueles que trajam as vestes
brancas e livram a mão do arado, dos que rasgam nas ferragens do arado as
roupas sujas de terra e aos
farrapos. E aqueles que guardam para
eles e os seus emissários o saber que pretende dizer a verdade da vida e do
destino, da Terra e do Universo, depois de haverem na trilha dos tempos os
sabedores legítimos, da multidão dos muitos que são aqueles a quem nos
dirigimos quando sonhamos ensinar-e-aprender, e somos nós.
desigual, dividida,
ela persiste
Tão grande quanto tudo o que é humano é a educação.
E também tão corriqueira, tão estranha e tão terrível. Depois de tantos anos e
de tantos furtos e mentiras ela está viva, como os homens, a história e as
culturas dos povos da erra. E sabemos
que ela não existe somente na escola e no sistema de poder sobre ela, mas entre
nós e esparramada pelos recantos e caminhos da
vida. E depois de tanto, todas as teorias sobre ela, e mais os
múltiplos métodos e os artifícios não a
tornaram e à sua pequena infinita trama de trocas entre as pessoas muito
diferentes do que, múltipla, diversa, ela tem sido entre os povos e o povo,
pela vida afora.
Entre professores-e-alunos, entre educandos-e-educadores, como também e
ainda entre avós-e-netos, nada existe na
educação de eterno ou de
absoluto. E nela como em toda a vida dos seres humanos e dos povos da
Terra, tudo muda sempre e
sempre de um modo ou de outro permanece. E nada nela foi a criação dos
deuses que talvez um dia tenham criado
as flores e os passarinhos. Nós,
criaturas e criadores de Prometeu descobrimos o seu nome e acendemos um dia o seu fogo. Pois como tudo
o que o homem precisou aprender para ser e cria a educação é filha do
trabalho e é, ela mesma, um trabalho vivido pelos e entre homens e mulheres.
Um
trabalho em apenas alguma coisa mais difícil do que outros,
Porque o trabalho
de ensinar e a vocação de aprender
foram gerados entre sons e sentido, emoções, saberes,
significados e palavras, sobre a matéria
de seu próprio espírito. E como um campo de milho ou de feijão, a educação vive
do que semeamos e cresce através do cuidado que lhe dedicamos. E em sua
verdadeira vocação ela existe apenas
onde as mulheres e os homens se reúnem e trocam o que são, o que vivem, o que
sabem e o que sonham. E compartem seus saberes livres e iguais, à volta da fogueira.
Por
isso mesmo, quando por meio da educação as pessoas transformam as regras das trocas do
trabalho e as leis da repartição dos seus frutos entre pessoas, grupos humanos,
comunidades ou mesmo povos, a educação
muda os seus nomes e troca as suas roupas. E varia de um sistema a outro o próprio
trabalho de que é feita. E aqueles que pretenderam obrigar o educador a ser
menos humano do que os avós de um tempo muito anterior, quando os homens
estavam ainda aprendendo a dar os primeiros nomes às estrelas, roubam da educação o que ela sonha
ser, e transformam o educar em instruir, o formar em capacitar, o aprender em
treinar e o saber para viver e compartir em um
conhecimento utilitário para
sobreviver e competir.
O educador que ensina falando da vida, da
natureza e da vocação dos seres humanos para com uma e a outra, sabe que o seu trabalho é um ofício como o de
quem lavra a terra ou como o de quem
escreve um poema. E ele sabe que o seu
ofício instrui o que se sabe sem nunca esquecer de ensinar
o que se cria com e entre as outras pessoas, ao se aprender com elas e entre elas. E ele
sabe que a mesma luz que clareia salas escurecidas é também um fogo vivo que incendeia no meio da noite o
coração e o mundo.
Pois
entre ensinar-e-aprender as palavras trocadas geram as idéias com que as
pessoas pensam na medida em que re-aprendem a serem livres. Isto é, a pensarem
os seus pensamentos e dizerem entre elas as suas palavras verdadeiras. As idéias que as pessoas sabem e trocam entre
elas não transformam o mundo. As idéias que as pessoas trocam entre elas e com que
aprendem e sabem o que não sabiam, transformam as pessoas que
aprendem-e-ensinam. E as pessoas transformam o mundo.
As
pessoas transformam o mundo!
Emissário
da palavra, acendedor do fogo do saber
e buscador sem tréguas do diálogo, o educador deve ser, em sal
dimensão de vida e de trabalho, nada menos do que um participante da aventura
de criar mundos novos, O educador não é um artesão parado num tempo e n~~ao é
quem repete, mas quem cria ao saber e ensinar. Por causa de um sonho que tem
todos os dias
ele não pode
esquecer todos os dias as tarefas de seu tempo. E nada do que é humano, nele,
em cada dia, lhe é indiferente. Podemos parecer sermos hoje menos do que fomos
ontem, mas nós sabemos que somos hoje
mais indispensáveis do que nunca. Porque mais do que antes trata-se de salvar o
homem de si mesmo e trata-se de re-ensina-lo
a sentir-se e se pensar não como um senhor do Mundo, mas como um irmão
do Universo. Por isso somos como pontes, mensageiros do que foi lembrado entre
os humanos e não pode ser esquecido.
Se
não podemos ser agora os senhores
solidários de nossa própria fala, sabemos que é possível recriar com o
outro as palavras perdidas entre os que perderam a voz, mas não a memória da
fala. Entre todas e todos, e não apenas os
escolhidos, o trabalho do educador serve ao reencontro do homem com a sua
origem. E não somente por um dever de
ofício é urgente não esquecermos
Que se
não tomarmos, com e entre eles, em suas
e em nossas mãos o leme do navio da educação outros o farão por nós e
contra nós. E em direção oposta à do horizonte da aurora dos tempos que hão de
vir, porque, junto, nós o faremos chegar. O
horizonte distante e possível do
tempo de um mundo fraterno de homens livres, onde todos possam ser, desarmados,
irmanados, solidários, ao mesmo tempo os
educados que aprendem e os sábios que nos ensinam, como as pessoas livres do Mundo verde, vivo e humano que
aprenderam a criar.