Por Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais
Começar o ano e retomar o trabalho nem sempre é muito fácil. Especialmente no
que se refere a tarefas que exigem alguma inspiração, como nosso esforço para
denunciar a grande mentira da "energia barata e renovável necessária para a
solução dos problemas do país" que justificaria a absurda construção da
hidrelétrica de Belo Monte no rio Xingu (com consequências desastrosas para o
continente e também para o mundo).Mas há uma hora em que, inevitavelmente, até mesmo os mais despreocupados tem
que voltar a se mexer: segundo uma nota da Folha de São Paulo de 19 de janeiro,
o ministro do Meio Ambiente Carlos Minc disse, enquanto prometia o licenciamento
ambiental da hidrelétrica de Belo Monte para fevereiro, que todo o processo de
licenciamento foi "pedagógico" para os órgãos ambientais do país. E que "o
projeto inicialmente apresentado tinha sérios problemas em relação à navegação,
aos peixes, que teriam mais de cem espécies ameaçadas, e a áreas de baixa
circulação que iriam piorar a qualidade da água". Mas disse que os principais
problemas teriam sido solucionados durante o processo. Isso me deixou um bocado
revoltado.
Como ele pode dizer que o licenciamento foi pedagógico? Se nem teve coragem
de aparecer na audiência pública de Altamira, onde, segundo os ribeirinhos, as
comunidades indígenas e o Ministério Público não houve qualquer condição de
diálogo e consulta de fato dos afetados pelo projeto. E a população da cidade
como um todo, que se esgoelou em gritos de protesto contra a barragem, diante de
técnicos, políticos e burocratas defendidos por forte esquema de segurança?
Só se for a pedagogia da tropa de choque e da intimidação. Sobre os outros
pontos, que "teriam sido solucionados ao longo do processo", trata-se de mentira
pura e simples (aqui teríamos a pedagogia da enganação). Não o foram e não é
preciso ir muito longe para provar isso. Basta recorrer às conclusões emitidas
pela equipe de Licenciamento Ambiental do IBAMA, sobre a análise técnica do
Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte, em documento divulgado no dia 23 de
novembro de 2009, do qual extraio a seguir alguns trechos, e que pode ser
acessado no original clicando-se aqui .
"Ressalta-se que, tendo em vista o prazo estipulado pela Presidência, esta
equipe não concluiu sua análise a contento. Algumas questões não puderam ser
analisadas na profundidade apropriada, dentre elas as questões indígenas e as
contribuições das audiências públicas". "O estudo sobre o hidrograma de consenso
não apresenta informações que concluam acerca da manutenção da biodiversidade, a
navegabilidade e as condições de vida das populações do trecho de vazão reduzida
(que ocuparia grande parte da Volta Grande do Xingu, que teria a maior parte de
seu fluxo de água desviado por canais colossais, comparáveis ao canal do Panamá
ligando o Atlântico ao Pacífico, conduzindo-o às turbinas da hidrelétrica). "A
incerteza sobre o nível de estresse causado pela alternância de vazões não
permite inferir a manutenção das espécies, principalmente as de importância
sócio-econômica, a médio e longo prazos (...) Os impactos decorrentes do afluxo
populacional não foram dimensionados a contento. Conseqüentemente, as medidas
apresentadas, referentes à preparação da região para receber esse afluxo, não
são suficientes e não definem claramente o papel dos agentes responsáveis por
sua implementação. Há um grau de incerteza elevado acerca do prognóstico da
qualidade da água, principalmente no reservatório dos canais".
Foi com uma certa satisfação que vi contemplada entre as recomendações dos
analistas ambientais do IBAMA a minha crítica principal, relativa aos
desmatamentos, que serão conseqüência muito mais da abertura de estradas e do
decorrente estímulo à imigração de imensos contingentes populacionais para a
região do que da obra em si: "apresentar modelagem da projeção do desmatamento
considerando os cenários de implementação e não-implementação do Aproveitamento
Hidrelétrico de Belo Monte". Ou seja, recomenda que sejam feitas simulações
matemáticas computadorizadas (amplamente disponíveis na atualidade) de como
seria o futuro com ou sem a barragem.
Mas cadê a tal modelagem? Dizem que os empreendedores responderam às 15
outras recomendações, além desta sobre os desmatamentos, feitas pelos
consultores da Diretoria de Licenciamento Ambiental do IBAMA. Mas não temos
acesso a estes documentos com as respostas! Nem mesmo o documento acima
reproduzido está disponível no site do órgão como parte do processo de
licenciamento ambiental de Belo Monte. Destaque-se que a legislação brasileira
determina publicidade do EIA/RIMA. Este é mais um dos aspectos do processo de
licenciamento que foram atropelados, nesta gana pela aprovação goela abaixo. Mas
os jornalões, ao invés de divulgarem as notas de cautela do IBAMA sobre Belo
Monte, preferem reproduzir a bobageira de que "os principais problemas foram
solucionados", do ministro midiático escorregadio e mascarado, com o penteado do
Bozo, sempre fantasiado de coletes, ao modo de um triste clown. É a pedagogia da
palhaçada.Mas talvez, pior do que este seja o ministro-sinistro. No dia 22 de janeiro,
a mesma Folha de São
Paulo divulgou trechos do relatório da Operação Castelo de Areia da Polícia
Federal, segundo a qual a empreiteira Camargo Corrêa pagou uma propina quase R$
3 milhões para políticos do PT e do PMDB por conta da obra da eclusa da
hidrelétrica de Tucuruí, também no Pará. O relatório cita, como beneficiários,
integrantes do grupo político de José Sarney, que controla o Ministério de Minas
e Energia. Um manuscrito chega a registrar o pagamento de propina no valor de R$
500 mil a um tal "Lobinho", que, segundo a polícia, é Edison Lobão Filho, o
filho do ministro Lobão, que, aliás, recentemente queixava-se de ter que
"mendigar" a licença ambiental de Belo Monte. Mendigou porque seu grupo é
dependente da roubalheira. Como é possível que, apesar de estar metido em tanta
corrupção, Edison Lobão ainda seja cogitado para vice da chapa de Dilma
Rousseff? Talvez o seja justamente por isso. Já esta é a pedagogia da corrupção.
A palhaçada e a corrupção: uma bela dupla para começar o ano, que promete não
ser nada fácil. Minc e Lobão. Que fonte lamentável de inspiração! De um lado o
show midiático, de outro, os negócios escusos. Negócios que nada mais são do que
as tais "tenebrosas transações", da música de Chico Buarque, que rolavam
enquanto "a nossa pátria mãe tão distraída" dormia, "sem perceber que era
subtraída". E aqui, as muralhas faraônicas que barrariam o Xingu (uma obra
comparável à construção de toda a nova capital), pior do que estranhas, como as
construções de Brasília, seriam "sinistras catedrais" ao deus do
desenvolvimento. Erguidas pelos filhos que erram "cegos pelo continente", e que
imigrariam aos montes para a esta região. Onde, depois de concluídas as obras,
seriam novamente abandonados, causando imensos desmatamentos que acabariam por
destruir não apenas o Xingu, mas o que resta de toda a Amazônia Oriental. O que
em última análise afetaria todo o planeta, daí o justificado engajamento de
setores ambientalistas da comunidade internacional na luta contra Belo Monte.
"Vai passar!", cantava-se em referência a um período, "página infeliz da
nossa história, passagem desbotada na memória das nossas novas gerações", que
deveria estar encerrado. Não passou. Citando agora o professor Oswaldo Sevá, da
Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp, a luta contra Belo Monte é a luta
política contra a ditadura militar que ainda não acabou (ver artigo especial do
Correio, "Belo
Monte, Belo Montro"). É possível que quando for publicado, esse texto já
esteja desatualizado, pois, acabo de saber, o Estado de São Paulo já está
prevendo a vergonhosa liberação da Licença Ambiental para esta semana. Se for o
caso, eu posso imaginar que cada pedra desse velho rio nesse dia vai se
arrepiar.
PS: De fato, na tarde de segunda, 1º de fevereiro, o IBAMA liberou a
construção da barragem. No Xingu, onde eu estava naquela tarde, nem os
banhistas, que se divertiam em mergulhos arriscados, nem os ribeirinhos ou
pescadores pareciam estar cientes ou preocupados com isso. Por outro lado,
disseram-me que quando a decisão foi transmitida de Brasília, todas as pessoas
no supermercado aglomeraram-se em frente à televisão entre incrédulas e
assustadas. Eles podem ter vencido uma batalha, mas não a guerra. A luta
continua. Na verdade está apenas começando. Eu nunca duvidei que a máfia dos
barrageiros venceria em tudo o que dependesse de papel, caneta e reuniões em
Brasília. Eles dominam a máquina e ela está lá para isso. Mas barrar
efetivamente o rio é outra história. É só quando começarem os esforços diretos
neste sentido que aqueles que vivem no rio, e do rio, efetivamente do Xingu, vão
entrar na luta contra esta obra que põe em risco mais do que a nossa floresta ou
as populações tradicionais, mas a economia e a própria democracia do país. Uma
roubalheira planejada há décadas e que serão nossos filhos, netos e bisnetos,
todos os contribuintes brasileiros do futuro que irão pagar.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia,
é professor da Universidade Federal do Pará.
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