Sobre
carecimentos radicais e a distinção entre “radicalismo de direita e radicalismo
de esquerda”
EPITÁCIO MACÁRIO*
“Não se iludam / Não me iludo / Tudo agora mesmo pode estar por um segundo” (Tempo Rei – Gilberto Gil).
A modernidade capitalista, diz Agnes
Heller, produziu carecimentos aos quais não pode responder. Por isto a filósofa
húngara os chama de carecimentos radicais. O avanço das forças produtivas
engendrou as possibilidades de saciar as necessidades básicas de alimentação,
habitação, educação e bem-estar da população, mas forjou também relações
sociais e de poder que negam estes benefícios para amplas parcelas da
população. A modernidade arrancou o homem de
seus localismos restringentes e o lançou num intrincado mundo de relações
universais, ao mesmo tempo em que lhes tirou – das pessoas – quaisquer
capacidades de intervir de modo consequente na própria comunidade ou nas
estruturas sociais que põem suas condições de existência. O modo de vida da modernidade
capitalista fez emergir um tipo de homem, afirma Leandro Konder, que perambula
num mundo de coisas, sem conexões conscientes com os outros e com a comunidade.
Trata-se de um tipo de homem que vive a anomia e a indeterminação dos fugazes
momentos como expressão da liberdade. Este mesmo homem que se embriaga
saltitante nos interstícios da vida moderna não tem nenhum controle efetivo
sobre o que ele mesmo experimenta ou sobre as funções vitais da sociedade ou da
cidade.O tipo de homem moderno experimenta
contradições que, às vezes, dilaceram sua personalidade: ele sente o
carecimento de trabalhar menos e usufruir mais, mas é constrangido a jornadas
laborais cada vez maiores, mais intensas e, em muitos casos, em atividades
mutiladoras do espírito e do corpo. Ele vive como carência o encontro, a
abertura para o outro, num mundo que lhe constrange a olhar somente para si
mesmo e ver o outro como meio de conseguir algum benefício. Ele deseja cultivar
o espírito como fim em si mesmo no usufruto das artes, dos conhecimentos de
todos os povos e em todas as línguas, mas é encantoado em afazeres alienadores
cujo objetivo é unicamente acumular capital para a glória da classe burguesa… E
mesmo quando frequenta a universidade, o homem moderno é instado a formar-se o
mais rápido possível, tornando-se um eficiente funcionário do mister de fazer
dinheiro. Pulsa nele o carecimento de abrir as portas de casa para a rua e
caminhar por ela à noite, de preferência às noites de segunda-feira, colhendo
seus cheiros, brisas e encontros… Mas é limitado pelas paredes dos barracos ou
grades de condomínio; pelas vielas estreitas e escuras ou pelo medo dos donos
da rua – os carros em disparada, os tiros da polícia e das classes perigosas, a
vigilância armada ou as câmeras sempre focadas na transgressão. As contradições da modernidade
capitalista interpelam em profundo os sentimentos e a razão do tipo humano
moderno, impondo ingentes desafios para os que almejam algum equilíbrio em face
das dilacerações que vivenciam. O pensamento capaz de responder
satisfatoriamente a estas contradições é aquele que as assume como constituidoras
do real, as problematiza em profundidade, procurando explicitá-las e conquistar
um horizonte de sentido para sua ação no mundo. Nessa busca, há de haver
sínteses entre os motivos pessoais – a busca da felicidade, por exemplo – e o
engajamento na práxis social para transformar o mundo na pátria da humanidade.
Esta é a filosofia radical, pois capaz de ir aos fundamentos das contradições e
oferecer horizontes para a resolução positiva daquilo que obstaculiza a
realização dos carecimentos radicais. Os indivíduos capazes de assumir as
contradições sociais e os dilemas pessoais que os dilaceram e orientar sua
conduta para a realização positiva destas contradições e dilemas é o homem
radical de esquerda. Ele não se furta de assumir a transformação das condições
estruturais da sociedade como experiência pessoal a ser vivida apaixonadamente.
Ele aprende a lidar com as dissintonias de sua vida privada e os requerimentos
de sua militância com coragem e é capaz de encontrar os momentos (mediações) em
que uma dimensão se transforma na outra. Ele é capaz de interiorizar as dores
da humanidade e transformá-las em motivo de engajamento sem deixar de cuidar de
si e dos seus amados. Ele sabe que a superação positiva das contradições que
dilaceram a sociedade é uma função da luta coletiva, mas está ciente, também,
que precisa cultivar seu espírito e seus afetos. O radicalismo de esquerda, diz
Heller, prima sempre pelo esclarecimento e pela democracia, mesmo quando está
isolado e congrega poucas pessoas. Pois sabe que a tarefa da transformação
social é histórica e resulta de sínteses complexas de forças coletivas que
vivem e renovam nas ações dos indivíduos. Estes devem, portanto, estar
conscientes e convencidos de seu papel. Sabe que, além das estratégias de
guerra que jogam importante papel na definição dos rumos da conjuntura, há algo
de mais universal e essencial: o fluxo de relações sociais e modos de vida que
só se transformam pelo encadeamento de complexas forças sociais que agem com
alto grau de espontaneidade. Intui, pois, que os valores mais universais se
materializam na medida em que vão afastando os seus contrapostos e se plasmando
no próprio cotidiano. Uma tarefa dessa envergadura é muito provável que exija a
crítica das armas, mas jamais terá êxito se não puser em marcha um largo e
complexo trabalho de educação e hegemonia. O esclarecimento e a democracia
jogam, pois, papeis decisivos para as conquistas de longo alcance. As contradições da modernidade criam,
com a mesma necessidade, o pensamento conformista e o tipo de homem
conservador. A naturalização da vida social é a primeira e mais banal
característica desse pensamento. Sua concepção de história postula que todo o
passado da humanidade se fez para o aperfeiçoamento da natureza humana, que
encontra no modo de vida capitalista as condições mais plenas para sua
realização: o egoísmo, o individualismo possessivo, as trocas mercantis, o
mercado e… o Estado como instância organizadora desse mundo. Para este tipo de
homem moderno, o presente é a realização necessária do passado e o futuro
apenas o aperfeiçoamento do que já temos. Ele reconhece as rupturas do passado
(a revolução burguesa, por exemplo), mas as insere num fio de continuidade
teleológica que teria por fim chegar aonde estamos: na modernidade capitalista. Inspirado nesse pensamento, o homem
conservador sofre as contradições sociais e os carecimentos radicais como
inevitabilidade, inexorabilidade, razão porque desenvolve uma atitude cambiante
de desprezo ou de benevolência para com as dores da humanidade. Quando vive
mais profundamente tais carecimentos e desafia suas convicções pessoais, o
homem conservador chega mesmo a assumir um engajamento político ou religioso
para melhorar a vida das amplas maiorias que não participam da riqueza moderna.
Seus parâmetros e finalidades, entretanto, não ultrapassam o quadro do vigente,
por isso o homem conservador é sempre eficaz funcionário defensor do status
quo. O radicalismo de direita é outro
aspecto incorporado e refuncionalizado pela modernidade capitalista. Retorno a
Heller para o caracterizar. A estrutura de pensamento do
radicalismo de direita não considera a humanidade como o supremo valor social,
razão porque pode fundar racional e positivamente, como valores, a guerra e a
extinção de raças, etnias, grupos de humanos. Ele não se dispõe a discutir
sobre o caráter ideológico de seus próprios valores, mas repele com veemência o
quadro valorativo de seus oponentes. Ao tomar parte nas discussões públicas
sobre temas da época, o radicalismo de direita agarra-se a argumentos não
racionais, valora os interesses particulares em detrimento dos coletivos,
invoca a autoridade e a fé ao invés do convencimento e da persuasão. Ao eleger
argumentos particularistas e irracionais, o radicalismo de direita reduz os
seguidores à condição de objetos manobráveis. Ele é, portanto, estruturalmente
elitista e autoritário. O homem radical de direita é
reacionário, pois não suporta os valores universalmente eleitos na época
histórica. É incapaz de vislumbrar o gênero humano como horizonte de sua
atuação no mundo, pois elege como parâmetros os interesses e o ponto de vista
de seu grupo ou segmento social em detrimento dos demais. Sempre que pode,
submete toda e qualquer discussão pública aos interesses particulares. Ele não
pode suportar sequer as práticas da democracia burguesa como, por exemplo, o
respeito às decisões coletivas ou das maiorias. Ele nutre ódio por tais
decisões quando se lhes confrontam e sua ação social é amplamente baseada em
preconceitos e exclusivismos.
* EPITÁCIO MACÁRIO é professor de Economia Política da
Universidade Estadual do Ceará (UECE).
https://espacoacademico.wordpress.com/2016/03/25/sobre-carecimentos-radicais-e-a-distincao-entre-radicalismo-de-direita-e-radicalismo-de-esquerda/
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