Transposição de águas ou transposição de erros (I)
Marco Antônio Tavares Coelho
Gramsci e o Brasil / La Insignia.
Brasil, fevereiro de 2004.
Ao lado de todas as mazelas que atormentam o Velho Chico, uma antiga ameaça volta a pairar sobre o "rio da unidade nacional'. O pesadelo resulta das artimanhas de um poderoso "lobby", que insiste em desviar uma parcela das águas do São Francisco para áreas do semi-árido setentrional do Nordeste (Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco). Mas um fato novo marcou o panorama atual: o "lobby" lavrou um tento importante porque conseguiu envolver o governo Lula na campanha para implantar seu projeto. No passado, por diversas vezes e em diferentes épocas, foram apresentados projetos a respeito dessa tentativa de sangria no Velho Chico. O primeiro deles surgiu na metade do século dezenove, quando o país começou a tomar conhecimento do flagelo causado pelas secas no Nordeste. Desde então calou fundo na opinião pública o pungente drama dos retirantes, a crestação das lavouras, a morte pela inanição dos rebanhos. Enfim, várias desgraças provocadas pela inclemência do meio
ambiente. Em razão disso, o governo imperial adotou algumas providências. Cabe assinalar, por exemplo, a decisão da Regência Trina, em 1831, autorizando a abertura de poços artesianos profundos. Depois, em 1856, encarregada de estudar o problema das secas, a Comissão Científica de Exploração, chefiada pelo barão de Capanema, recomendou a "abertura de um canal ligando o rio São Francisco ao rio Jaguaribe". (2) Atendendo a tal indicação, logo a seguir aparece o primeiro projeto esquematizando o desvio do São Francisco, na fronteira entre Pernambuco e Bahia. Plano que não vingou porque, naquela época, o Brasil não possuía recursos tecnológicos que permitissem a execução da obra, que demandava o bombeamento dessas águas a fim delas ultrapassarem a Chapada do Araripe, para depois chegarem ao Ceará. (3) No século vinte o movimento em favor da transposição de águas do São Francisco foi conquistando adeptos quando as secas agravavam o quadro das populações miseráveis. Na
década de 40, por exemplo, a questão foi apresentada no famoso livro de Geraldo Rocha, empresário e político de grande prestígio nacional. (4) Em 1958, o engenheiro Mário Ferracuti divulgou seu projeto na revista "O Cruzeiro", em que propunha a construção de uma barragem para represar o São Francisco perto de Cabrobó (PE), com a finalidade de dali se bombear água para o Ceará e Rio Grande do Norte. Em 1983, Mário Andreazza, quando disputava sua indicação como candidato à presidência da República, na eleição pelo voto indireto, apresentou um projeto batendo na mesma tecla, como um dos pontos de sua plataforma de governo. Como Andreazza foi derrotado pelo seu oponente - Paulo Maluf - na convenção da Arena, tudo fazia crer que logo essa proposta cairia no esquecimento, acompanhando o declínio inexorável de seu proponente. Mas as coisas não evoluíram dessa forma e o projeto não foi transferido para o arquivo das idéias irrealizáveis. Como uma fênix, a tese renasceu de
suas cinzas. Como se explica tal sobrevida? Atrás da justificativa de que o plano resolveria um problema que atormenta os nordestinos, na verdade ele correspondia sobretudo aos interesses de um grupo de empresários e próceres políticos. Em sendo assim, consegue ser reapresentado, apesar das reviravoltas no cenário nacional. Por tudo isso, pode-se dizer que o plano do desvio de águas do São Francisco transformou-se numa espécie de ectoplasma, que paira sobre o Brasil. (Segundo o Aurélio, ectoplasma na parapsicologia é uma substância visível que emana do corpo de certos médiuns). Tal fenômeno fantasmagórico foi bem caracterizado pelo jornalista Washington Novaes, ao dizer que esse projeto mais "parece assombração, que de tempos em tempos reaparece". (5) Montado para impulsionar a realização de gigantescas obras no Nordeste, principalmente a cada início de governo esse grupo de empresários e políticos pressiona de forma renitente a administração federal, a fim de conseguir
que essas empreitadas sejam iniciadas. No entanto, é necessário frisar que nesse "lobby" participam destacadas personalidades não somente do Nordeste. Washington Novaes assinalou que o "lobby" é "capitaneado, na área financeira, por conhecida figura da diplomacia que tivera de ser afastado às pressas de um país europeu, após escândalo denunciado por alta figura dessas bandas". (ídem) Como trabalha esse "lobby"? Ele desdobra-se em três áreas, com um pessoal qualificado para o exercício de funções bem definidas. Em primeiro lugar, organizou uma assessoria técnica para redigir estudos, pareceres, discursos etc; cabendo também a ela a missão de participar em reuniões e encontros, quando o tema é a transposição do São Francisco. Tais assessores atuam há muitos anos com o apoio do Ministério da Integração Nacional e do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, por intermédio de uma prestadora de serviços técnicos, uma fundação sediada em São José dos Campos, denominada
Fundação de Ciência, Aplicações e Tecnologia Espaciais - FUNCATE, que é dirigida por um brigadeiro do ar aposentado, José Armando Varão Monteiro. Assim, a FUNCATE é o braço executivo que contrata firmas de consultoria para realizar alguns estudos. Entre elas aparecem a VBA CONSULTORES e o consórcio JAAKO PÖYRY-TAHAL. Em segundo lugar, o "lobby" conta com pessoas dedicadas ao corpo-a-corpo nos bastidores da administração federal e no Congresso. Nesse ramo desempenham função relevante políticos que se comprometeram com a realização do projeto, como o ex-ministro Aluísio Alves. No momento, a figura de proa nesse mister é o senhor Fernando Bezerra, senador pelo Rio Grande do Norte. Ademais, em terceiro lugar, nas fileiras do "lobby" existem pessoas que militam nos meios de comunicação, colocando artigos na imprensa, sugerindo pautas e aliciando jornalistas para que trabalhem em favor do projeto da transposição. Como se trata de uma estrutura que vem atuando com
desenvoltura ao longo de 25 anos, tudo indica ser elevado o custo de tal desempenho. Por isso logo vem à tona a seguinte indagação - quem arca com suas despesas? A resposta é simplesmente óbvia: elas são cobertas por recursos do governo federal. A confirmação desse fato partiu de uma pessoa de grande projeção política e que também se destaca pela sua habitual franqueza. Naturalmente, estamos nos referindo ao vice-presidente da República, José Alencar. Sua indiscrição ocorreu num seminário internacional, realizado em Brasília, em setembro de 2.003, promovido pela Agência Nacional de Águas - ANA, com o objetivo de analisar o gerenciamento das atividades do projeto GEF/PNUMA na bacia do São Francisco. Procurando reforçar sua argumentação em favor da transposição de águas do São Francisco, o sr. José Alencar, naquela reunião, proclamou que "o governo já havia gasto quase 70 milhões de reais na preparação dos projetos de engenharia". Acrescentou que "todos os documentos
estão prontos e que, por essa razão, desde logo poderiam ser feitos os editais para a licitação das obras". (Posteriormente, segundo afirmou num debate, realizado na Assembléia Legislativa de Minas Gerais, no dia 21 de outubro de 2.003, ele declarou coisa diversa, uma vez que, com a modificação dos projetos, o governo ainda não dispõe das indispensáveis autorizações do IBAMA, ou seja, a aprovação do relatório de impactos ambientais.) Veja-se bem, como até agora não se construiu absolutamente nada - nem um metro de barragem, de canal ou adutora - em quê e como se gastou tanto dinheiro? Obviamente, além de propiciar excelente remuneração a essas "empresas de consultoria", aí está um exemplo de como são desperdiçados recursos dos contribuintes. Isto porque, há mais de uma década uma montanha de dinheiro vem sendo gasta numa papelada que absolutamente inútil. Planos e projetos que vão se empilhando, que dão em nada, mas que alimentam uma corte de assessores aparentemente bem
qualificados nos meios acadêmicos.
A trajetória de um plano Voltando ao relato sobre a insistente pressão em favor do projeto do desvio de águas do São Francisco, vejamos os episódios ocorridos após a derrota de Andreazza, na disputa dentro da Convenção da ARENA. Dez anos depois, em 1993, no governo de Itamar Franco, o ministro da Integração Nacional, Aluísio Alves (ex-governador do Rio Grande do Norte) reabriu a discussão, propondo a construção de um canal em Cabrobó, para retirar do São Francisco até 150 metros cúbicos de água por segundo, com o propósito de beneficiar áreas do Ceará e Rio Grande do Norte. Todavia, esse projeto foi rapidamente fulminado por um parecer do Tribunal de Contas da União, mostrando que, "embora se pensasse em gastar alguns bilhões no projeto, ele não fazia parte do planejamento da administração federal e era ignorado pelo Ministério da Agricultura, embora se destinasse à irrigação em larga escala". (6) Além disso, o mesmo Tribunal de Contas salientou, em seu parecer, que,
ademais, o projeto impedia o crescimento da irrigação em Minas Gerais e na Bahia, além de provocar uma queda na produção das hidrelétricas, uma perda no valor de um bilhão de dólares. Logo a seguir houve nova ofensiva do "lobby". No primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, os paraibanos Cícero Lucena e Fernando Catão, quando ocuparam a Secretaria Especial de Políticas Regionais, redesenharam o projeto Aluísio Alves e nele incluíram duas transposições para levar água para a Paraíba. Pouco tempo depois, a Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco e do Parnaíba - CODEVASF desenvolveu um projeto destinado a irrigar todo o semi-árido. Contudo, como previa ser realizado num prazo de 25 a 30 anos e como seu custo seria de vinte bilhões de dólares, esse plano mirabolante foi engavetado, pois logo evidenciou-se que ele navegava nas nuvens das idéias totalmente fora da realidade. Um outro capítulo dessa novela surrealista sucedeu quase na mesma época.
Referimo-nos à proposta encaminhada e defendida com unhas e dentes pelo ex-ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra . Era um projeto de menores dimensões em comparação com o da CODEVASF. "Foi concebido para transferir águas do São Francisco para as bacias adjacentes do Nordeste Setentrional, localizadas nos estados do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Entretanto, outros estudos de viabilidade para a construção de canais ligando o Piauí e o Tocantins também foram contemplados, mas não incluídos no custo do projeto". (7) Este foi estimado em 2.7 bilhões de reais. Nele estava embutida uma proposta de captação de recursos junto ao BNDES, além da privatização da CHESF e do encaminhamento de novas tentativas de empréstimos junto ao Banco Mundial, pois esse estabelecimento financiou os primeiros estudos da transposição. O projeto contemplava construir dois eixos principais de adução. 1 - o Eixo Norte: com uma captação próxima a Cabrobó, o canal aduziria
água para as bacias do Brígida (em Pernambuco), do Jaguaribe/ Metropolitana (no Ceará), Apodi e Piranhas-Açu (no Rio Grande do Norte), além do Piranhas (na Paraíba); 2 - Eixo Leste: captação no lado da barragem de Itaparica, o canal levaria água para as bacias de Moxotó (em Pernambuco) e Paraíba (na Paraíba), prevendo-se a possibilidade de ser transportada água para Recife e para o agreste pernambucano. Foi explicitado "que o bombeamento não será contínuo, pois visa apenas garantir o suprimento de alguns açudes compensando a água evaporada e, com isso, abastecer seis milhões de pessoas e irrigar 180 mil hectares de terras. Para a água chegar às vertentes daqueles estados, terá de ser elevada a 160 metros de altura, passar por túneis e aquedutos e percorrer 2.000 quilômetros de rios a céu aberto evaporando e se infiltrando. Segundo o governo, o custo será de 3,5 bilhões de reais somente em obras de engenharia". (8) O político potiguar incluiu no projeto outras obras que
deveriam ser feitas, tais como barragens para regularizar a vazão de afluentes do São Francisco, em Minas Gerais. E acrescentou que seriam construídos 200 quilômetros de canais artificiais e perenizados mais de dois mil quilômetros de rios. Esse projeto começou a ser examinado, entre os anos de 1981 e 1985, no Departamento Nacional de Obras contra a Seca - DNOCS. Posteriormente, um estudo sobre o impacto ambiental do projeto foi submetido ao IBAMA. Inicialmente, o presidente FHC concordou que o ministro Fernando Bezerra impulsionasse o plano. Contudo, o técnico que em 2.002 assumiu o Ministério do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, na undécima hora convenceu o então ocupante do Palácio do Planalto de que era um erro colossal o projeto defendido pelo sr. Fernando Bezerra. (Atualmente, o sr. José Carlos Carvalho é o presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco, sendo também o titular da Secretaria do Meio Ambiente de Minas Gerais.) Recapitulando os
diversos capítulos dessa já exaustiva novela, chegamos assim à disputa no cenário do governo do PT.
Notas (1) Capítulo de um livro em preparação a respeito do rio São Francisco.
(2) Aldo Rebouças, revista "Estudos Avançados", da USP, n. 29, pág. 136, São Paulo, 1997.
(3) Vide site - http//www.portalsaofrancisco.hpg.ig.com.br.
(4) "O Rio do São Francisco", págs. 229 e 230.
(5) "Estado de S. Paulo", 22/8/03.
(6) "O Estado de S. Paulo" 22/8/03.
(7) "Da transposição das águas do Rio São Francisco à revitalização da bacia: as várias visões de um rio", Renata Andrade, agosto de 2.002, e-mail: renata@socrates.berkeley.edu
(8) Fernando Ferro e Maurício Aroucha, in "O desafio da sustentabilidade", páginas 152 e 153, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2001.
Ferramenta criada para a disciplina “Tópicos Avançados em Ambiente e Sociedade I”oferecida pelo Nepam - Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp com o objetivo de propor discussões sobre educação, ambiente e sociedade a partir de materiais provenientes de diferentes áreas, incentivando e permitindo o encontro com a diversidade do pensamento.
IMPOSTOS EM SÃO PAULO
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