IMPOSTOS EM SÃO PAULO

segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Zumbi olhava Gaia.

Roberto Malvezzi (Gogó)
“Essa era a visão que Zumbi tinha de Gaia”. Foi o primeiro pensamento que me veio à cabeça quando olhei as serras ao redor, ao nascer do sol, quando dez mil pessoas chegaram ao topo da Serra da Barriga, na romaria da Terra e das Águas, em Alagoas. O sol nascente, iluminando a neblina sobre os vales, sobre um resto de Mata Atlântica, com Gaia respirando aparentemente em paz, me fez pensar – a todo momento repenso – na teoria de Lovelock, segundo a qual a Terra é viva, já tem oitenta anos de idade para quem irá viver cem, está velha, está doente. Em quarenta anos, quando a emissão de CO2 atingir 500 ppm, as algas marinhas vão morrer e Gaia será um planeta tórrido, com poucos sobreviventes onde hoje estão as regiões mais frias do planeta. Segundo o cientista, quatro bilhões de seres humanos irão morrer.
Zumbi, na verdade, do alto da Serra, espreitava seus inimigos. O ponto é estratégico, posição de quem vivia em combate. Mas ainda é possível imaginar a visão que ele tinha da região há apenas 300 anos atrás. Sua nação se estendia por mais de cem quilômetros, onde reencontravam a liberdade para serem novamente africanos. Hoje, o que resta da Mata Atlântica, ainda nos dá uma idéia do que Gaia já foi no litoral brasileiro.
Voltando as costas para o mirante, a outra visão é de um estado dominado pela monocultura da cana, sob o comando de meia dúzia de usineiros. Dizimaram a nação Zumbi para entregar seu território a poucos latifundiários e para que eles a transformassem no verde paquidérmico da cana monocultural. Como diz Vandana Shiva: “a monocultura é, sobretudo, mental”.
A romaria é um ato de penitência. Começou às 7 da noite com bandas e apresentações culturais. Animei as comunidades das nove às 10. Das 10 às doze foi a missa. Da meia noite até 6 da manhã a longa marcha, serra acima, até chegar ao reduto de Zumbi. Gente de todas as idades, mães carregando filhos nos braços, idosos caminhando entre crianças, onde as distâncias se multiplicam pelo cansaço e pela dificuldade de andar em encostas íngremes. Depois, a visão quase que paradisíaca de Gaia.
Pelo percurso jovens – a maioria – cantam, dançam, celebram. É cansativo, mas também é festa. É um mistério essa paixão popular pelas noites em claro, em celebração, em oração, em reflexão, em caminhada. As romarias da Terra e das Águas modificaram o conteúdo das romarias, inovaram, trouxeram-lhe um novo sentido, sem abandonar seu milenar significado.
Há quem diga que nosso povo pobre já não existe enquanto Igreja. Há quem diga que as comunidades eclesiais de base já não existem. Há quem diga que a Igreja comprometida com os pobres e com os desafios ambientais já não existe. Só pode dizer isso quem não viu o que eu vi. Tenho a certeza que, do seu território sagrado, também nos viu Zumbi. Quem não vê o povo, quem não vê a Serra da Barriga, quem não vê Zumbi, quem não vê Gaia é porque já não enxerga.

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