Ferramenta criada para a disciplina “Tópicos Avançados em Ambiente e Sociedade I”oferecida pelo Nepam - Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp com o objetivo de propor discussões sobre educação, ambiente e sociedade a partir de materiais provenientes de diferentes áreas, incentivando e permitindo o encontro com a diversidade do pensamento.
IMPOSTOS EM SÃO PAULO
segunda-feira, 2 de julho de 2007
Agentes de Saúde em S.Paulo trabalhando com Educação Ambiental
Vale a pena ver os Agentes Comunitários de Saúde em S.Paulo atuando.
Além da história dos AGENTES DE SAÚDE DE SÃO PAULO, existem outras histórias que nos comovem Uma delas é do Denis, do Rio Grande do Sul.Com certeza me perguntarão: mas o que isso tem a ver com o AMBIENTE E A EDUCAÇÃO? Acho que eu diria: TUDO...AFINAL ESTE É O NOSSO JARDIM COM NOSSAS FLORES.
"Num jorro de loucura e raiva" Dênis Roberto da Silva Petuco
O trabalho em saúde sempre rende histórias extremamente interessantes. Podem ser histórias engraçadas, ou mesmo tocantes, plenas de emoção. Seja na atenção primária, em alguma especialidade, na emergência de um grande hospital ou em alguma campanha preventiva e de vacinação, o tipo de trabalho desenvolvido por estes profissionais é uma fonte inesgotável de causos e de histórias para serem contadas nos jantares e nas mesas de bares, regadas a bebidas, amizades e petiscos.
Dentre estes trabalhadores, há um em especial, que em face de sua atividade peculiar, acaba acumulando histórias de uma qualidade diferenciada. Trata-se do agente redutor de danos, que atua de maneira semelhante ao agente comunitário de saúde, visitando comunidades e conversando com as pessoas nos seus locais de moradia e de convívio. O que diferencia o redutor de danos de um agente comunitário é o público ao qual seu trabalho está voltado, formado por pessoas que usam drogas. Cabe a este agente inserir-se em redes clandestinas, numa rota de aproximação com esta população, possibilitando a construção de relações de vínculo e confiança. A partir deste momento, o agente redutor de danos busca construir junto ao seu público-alvo ações que passam pela prevenção em DST/Aids e pela promoção de saúde e cidadania. Tais ações, durante alguns anos, resumiram-se à troca de seringas sujas por limpas, como forma de prevenir a transmissão do HIV e do HCV junto a pessoas que usam drogas injetáveis, e suas redes sociais. Atualmente, desenvolvem-se todo um conjunto de estratégias, que incluem a aproximação dos usuários com os serviços de saúde, a escuta e a sensibilização para a adesão ao tratamento da Aids.
A Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Porto Alegre articula, desde 1995, ações de redução de danos desenvolvidas por uma equipe de dez agentes que, de segunda à sexta-feira, vão até diversas comunidades, nos locais e nos horários em que é possível encontrar pessoas que usam drogas. Durante alguns anos, este programa funcionou dentro da Coordenação de Políticas de Controle em DST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde. Atualmente, está subordinado à Coordenação de Saúde Mental.
Trabalhei por pouco mais de um ano junto à equipe de redutores de danos de Prefeitura Municipal de Porto Alegre, num período que foi de janeiro de 2004 a fevereiro de 2005. Antes disto, já havia atuado em diferentes projetos de prevenção e de tratamento junto a pessoas que usam álcool e outras drogas, o que fez com que minha passagem, ainda que breve, tenho tido algum qualidade. Porém, se por um lado afirmo que possuía alguma experiência, é importante que se diga também que nenhum outro serviço, governamental ou não governamental, atua segundo a dinâmica operacional da Redução de Danos, qual seja: uma busca ativa pelos usuários, nos locais onde estes se reúnem para consumir drogas, e em horários onde a maioria das pessoas evita tais áreas. Sendo assim, não é incomum ver um redutor caminhando pelos becos de alguma comunidade de periferia, buscando justamente os mocós onde se reúnem estas pessoas, que se escondem dos olhos da maioria da população, e em especial, da polícia.
Ao longo destes treze meses de trabalho no Programa de Redução de Danos de Porto Alegre (PRD/PoA), pude presenciar e até mesmo protagonizar um sem número de situações que resultaram em histórias que poderiam ser contadas aqui. Algumas emocionantes, outras engraçadas, outras importantes no sentido de denunciar o alto nível de exclusão e de vulnerabilidade a que estão sujeitos as pessoas que usam drogas inseridas em um contexto de pobreza e violência estrutural, simbólica e real. Escolhi uma destas, em função de ser a que primeiro me vêm à memória cada vez que lembro minha experiência junto à equipe de redutores. Uma história que talvez não contemple o desejo por emoções fortes, sempre associadas, no imaginário da população, ao trabalho que se realiza em comunidades tradicionalmente vinculadas ao tráfico de drogas, envolvidas com a transgressão e com a violência. Porém, se não há este teor de adrenalina, por outro lado, apresenta-se como história bastante representativa daquilo que vive, em seu cotidiano, o agente redutor de danos.
Toda quinta-feira à noite, eu e mais três colegas deixávamos o Centro de Saúde da Vila dos Comerciários para um plantão que abrange uma parcela considerável do território da Vila Cruzeiro do Sul, bem como as comunidades do Campo da Tuca e do Morro da Cruz. Este trabalho incluía uma série de ações, que iam desde a troca de seringas sujas por limpas até a distribuição de preservativos junto às comunidades visitadas. Neste trabalho, um personagem que cumpre um papel importantíssimo é o parceiro do programa. Trata-se de uma pessoa que, por diferentes razões, apresenta-se como voluntário na multiplicação de ações e informações de Redução de Danos junto a uma parcela específica da comunidade onde está inserido. O parceiro pode ser uma liderança comunitária, uma pessoa que usa drogas, ou até mesmo um pequeno comerciante local. Em uma destas comunidades, uma de nossas parceiras era Regina*.
Regina era uma modesta vendedora de drogas da Vila Piracema**. Chamo-a “vendedora” porque julgo o termo “traficante” pouco apropriado se falamos de Regina. Muito mais vítima do que algoz, ela vendia crack e cocaína como meio de sustentar suas filhas, e também sua dependência. Vítima diante do fato de ser uma mulher pobre em um país machista e desigual, e vítima diante de sua própria condição de dependente de crack. Estas distintas vulnerabilidades – pobreza, condição de gênero e dependência química – alimentavam-se mutuamente, criando uma sinergia de vulnerabilidades que contribuía para que Regina se sentisse uma pessoa sem perspectivas, vivendo um dia depois do outro, sem sonhos nem esperanças.
Quando me tornei redutor, Regina já era parceira do programa havia muito tempo. Portanto, tudo o que posso contar diz respeito tão somente ao período em que pude conviver com ela, nos breves momentos em passávamos na sua casa, toda quinta-feira à noite. Diferente da maioria dos outros parceiros de outras comunidades, Regina nunca nos convidava a entrar em sua casa. Nós a chamávamos; ela deixava a casa e se dirigia até a calçada, onde nos alcançava uma caixa para depósito de lixo hospitalar, recheada de seringadas usadas, e pegava conosco um kit contendo seringas limpas, agulhas, ampolas com água destilada, swabs com álcool, folhetos informativos e preservativos, que seriam disponibilizados às pessoas de seu convívio.
Mas houve uma noite em que as coisas não aconteceram deste jeito. Era cerca de nove horas da noite quando chegamos à casa de Regina, depois de termos passado por algumas outras vilas e visitado alguns outros parceiros. Como sempre, paramos em frente à sua casa, e chamamos seu nome. Esperamos um pouco, até que a vimos aparecer junto à porta de sua casa. Importante dizer que entre a porta e o portão inexistente (o que havia era uma abertura em meio ao muro), existia algo em torno de três metros, e que a casa situava-se abaixo do nível da calçada, de modo que, quando ela apareceu à porta, nós tivemos de olhar para baixo. Regina então fez um sinal, e nos convidou a entrar.
Entramos. O cheiro metálico denunciava que ela havia acabado de fumar uma pedra de crack. Quanto à fisionomia, esta dizia tratar-se de uma droga muito boa. A TV estava ligada em um volume muito alto. Ela nos recebeu na sala, onde havia, além da TV, um sofá de três lugares, e uma poltrona que fazia conjunto com o sofá. Eu sentei-me ao tapete. Quanto aos meus colegas de equipe, um estava na casa de outro parceiro, na mesma rua, enquanto que os outros dois estavam ali comigo: um ocupando a poltrona, e o outro em pé, na porta.
Regina estava muito louca, e passou a falar desorganizada e compulsivamente. Falou sobre seus filhos, e sobre o modo como conseguiu evitar que estes lhe fossem retirados pelo Conselho Tutelar. Falou sobre violência policial, e sobre abuso sexual, nos intimando a responder se achávamos que um homem tinha o direito de passar a mão em uma mulher apenas por ser brigadiano. Falou sobre amigos e amigas que morreram em função da Aids, da droga e da violência. Falou muito, verborragicamente, misturando os assuntos de modo que um tema se transformava em outro repentinamente, para retornar ao ponto original de maneira igualmente repentina logo em seguida. Falou durante muito tempo, misturando sua voz aos reclames que interrompiam de tempos em tempos a novela das oito.
É comum que se ouça de pessoas que atuam no campo do cuidado a pessoas que usam álcool e outras drogas, que se torna impossível realizar uma escuta mais qualificada quando temos à nossa frente uma pessoa sob forte efeito de alguma substância psicoativa. Diz-se que a fala se torna desorganizada, e que não há nenhum ganho, nenhuma possibilidade terapêutica em tal evento. Por outro lado, li certa feita que Jung ficava por horas ouvindo pessoas consideradas absolutamente loucas, buscando identificar algum sentido nas frases aparentemente desconexas proferidas por aqueles sujeitos. Dizia ele que se o terapeuta possuir uma boa cultura geral e alguma sensibilidade, sempre é possível encontrar sentidos. Lembro que eu mesmo, numa visita realizada a Unidade Mário Martins do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, fiquei por alguns momentos ouvindo uma mulher de cerca de cinqüenta anos que parecia não falar coisa com coisa. Fiquei a ouvindo, até que em determinado momento ela falou na Fazenda Anoni. Uma emoção muito forte tomou conta de mim, quando lhe perguntei se ela tinha trabalhado se ela tinha participado da ocupação promovida pelo MST naquela propriedade, no início dos anos 80. Ela diminuiu a velocidade de sua fala, olhou para mim, e como que por mágica, passou e contar muito calmamente sobre como trabalhava com seus irmãos, e sobre como participava das plenárias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Foi um momento muito, muito especial.
Voltando à nossa amiga Regina, eu não posso dizer que houve um momento específico em que a interrompi para tomar o sentido de alguma das frases ditas. Até mesmo porque não havia nenhuma necessidade disto: tudo o que ela dizia fazia sentido, e bastava que se aguçasse o ouvido, prestando bastante atenção diante da torrente incessante de palavras que saíam de dentro daquela mulher, para que se compreendesse exatamente de que ela estava falando. Uma multiplicidade imensa de dores, de desesperos, de mágoas, vinha como que num jorro de loucura e raiva, de tristeza e desesperança. Regina falava, e era como se quisesse apenas ouvir a própria voz. Ela não olhava para nenhum de nós; apenas falava, e sua fala era a fala de milhares de mulheres, com suas histórias de violência, abuso e sofrimento. Sua fala era a fala de milhares de pessoas que usam drogas, jogadas na vala comum do preconceito e da incompreensão, demonizadas sob o rótulo homogeneizante que julga a todos traficantes, condenando-os à invisibilidade e à criminalidade. Sua fala era a fala de milhares, e ao mesmo tempo, sua fala era única, porque única era sua dor. Pessoa e intransferível.
Até que parou. Em um determinado momento, talvez para tomar fôlego, ou talvez diante de uma súbita memória ainda mais atroz do que qualquer uma já dita, Regina parou, e pela primeira vez levantou seus olhos procurando algum interlocutor. Encontrou os meus, e houve por um momento uma aura de cumplicidade. Melhor dizendo: de conspiração. Por alguns segundos, respiramos juntos, e sabíamos exatamente o que deveria ser feito. Eu me arrastei para um pouco mais perto do sofá, e peguei sua mão, e ela chorou um choro mudo que fazia com seu corpo tremesse e seu rosto enrugasse. Eu permaneci ali, segurando sua mão, e pensando que o mundo não é um bom lugar para se viver quando se é uma mulher pobre e sensível. Até que depois de algum tempo, ela abriu os olhos, e finalmente derramou algumas lágrimas, crispando os lábios. Eu acariciei sua mão, olhei nos seus olhos e sorri um sorriso que queria dizer: “Ei! Você sabe que nós estamos aqui, não é? Sabe que te entendemos, e que jamais iremos te julgar, não é?”. E ela entendeu (ou pelo menos eu acho que entendeu), e me devolveu um sorriso tímido. Eu acariciei sua mão, e lhe disse que precisávamos ir, pois havia ainda outras áreas e outras pessoas esperando por nós. Ela fez que sim com a cabeça, e sorriu de novo, fungando e esfregando os olhos, secando as lágrimas do rosto. Eu levantei, ela levantou. Abraçamos-nos por algum tempo. Um de meus colegas chegou mais perto e lhe deu um beijo na face, reiterando que na próxima semana estaríamos ali novamente. Ela sorriu, olhou para o chão e agradeceu nossa visita.
Regina ficou parada no meio da sala, enquanto saíamos e íamos embora. Ficou nos olhando, sem nos acompanhar até o portão. Caminhamos todos em silêncio até o furgão que nos esperava para levar-nos até o Campo da Tuca, e depois para o Morro da Cruz. Numa casa, bem próxima de onde estava a camionete que nos trouxera até ali, duas jovens ouviam funk em pleno volume, ensaiando alguns passos. Seguimos em silêncio, e em silêncio entramos no carro. No caminho até a próxima comunidade, eu pensei comigo: nunca fora tão trabalhador de saúde quanto naquele dia.
Um comentário:
Além da história dos AGENTES DE SAÚDE DE SÃO PAULO, existem outras histórias que nos comovem Uma delas é do Denis, do Rio Grande do Sul.Com certeza me perguntarão: mas o que isso tem a ver com o AMBIENTE E A EDUCAÇÃO? Acho que eu diria: TUDO...AFINAL ESTE É O NOSSO JARDIM COM NOSSAS FLORES.
"Num jorro de loucura e raiva"
Dênis Roberto da Silva Petuco
O trabalho em saúde sempre rende histórias extremamente interessantes. Podem ser histórias engraçadas, ou mesmo tocantes, plenas de emoção. Seja na atenção primária, em alguma especialidade, na emergência de um grande hospital ou em alguma campanha preventiva e de vacinação, o tipo de trabalho desenvolvido por estes profissionais é uma fonte inesgotável de causos e de histórias para serem contadas nos jantares e nas mesas de bares, regadas a bebidas, amizades e petiscos.
Dentre estes trabalhadores, há um em especial, que em face de sua atividade peculiar, acaba acumulando histórias de uma qualidade diferenciada. Trata-se do agente redutor de danos, que atua de maneira semelhante ao agente comunitário de saúde, visitando comunidades e conversando com as pessoas nos seus locais de moradia e de convívio. O que diferencia o redutor de danos de um agente comunitário é o público ao qual seu trabalho está voltado, formado por pessoas que usam drogas. Cabe a este agente inserir-se em redes clandestinas, numa rota de aproximação com esta população, possibilitando a construção de relações de vínculo e confiança. A partir deste momento, o agente redutor de danos busca construir junto ao seu público-alvo ações que passam pela prevenção em DST/Aids e pela promoção de saúde e cidadania. Tais ações, durante alguns anos, resumiram-se à troca de seringas sujas por limpas, como forma de prevenir a transmissão do HIV e do HCV junto a pessoas que usam drogas injetáveis, e suas redes sociais. Atualmente, desenvolvem-se todo um conjunto de estratégias, que incluem a aproximação dos usuários com os serviços de saúde, a escuta e a sensibilização para a adesão ao tratamento da Aids.
A Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Porto Alegre articula, desde 1995, ações de redução de danos desenvolvidas por uma equipe de dez agentes que, de segunda à sexta-feira, vão até diversas comunidades, nos locais e nos horários em que é possível encontrar pessoas que usam drogas. Durante alguns anos, este programa funcionou dentro da Coordenação de Políticas de Controle em DST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde. Atualmente, está subordinado à Coordenação de Saúde Mental.
Trabalhei por pouco mais de um ano junto à equipe de redutores de danos de Prefeitura Municipal de Porto Alegre, num período que foi de janeiro de 2004 a fevereiro de 2005. Antes disto, já havia atuado em diferentes projetos de prevenção e de tratamento junto a pessoas que usam álcool e outras drogas, o que fez com que minha passagem, ainda que breve, tenho tido algum qualidade. Porém, se por um lado afirmo que possuía alguma experiência, é importante que se diga também que nenhum outro serviço, governamental ou não governamental, atua segundo a dinâmica operacional da Redução de Danos, qual seja: uma busca ativa pelos usuários, nos locais onde estes se reúnem para consumir drogas, e em horários onde a maioria das pessoas evita tais áreas. Sendo assim, não é incomum ver um redutor caminhando pelos becos de alguma comunidade de periferia, buscando justamente os mocós onde se reúnem estas pessoas, que se escondem dos olhos da maioria da população, e em especial, da polícia.
Ao longo destes treze meses de trabalho no Programa de Redução de Danos de Porto Alegre (PRD/PoA), pude presenciar e até mesmo protagonizar um sem número de situações que resultaram em histórias que poderiam ser contadas aqui. Algumas emocionantes, outras engraçadas, outras importantes no sentido de denunciar o alto nível de exclusão e de vulnerabilidade a que estão sujeitos as pessoas que usam drogas inseridas em um contexto de pobreza e violência estrutural, simbólica e real. Escolhi uma destas, em função de ser a que primeiro me vêm à memória cada vez que lembro minha experiência junto à equipe de redutores. Uma história que talvez não contemple o desejo por emoções fortes, sempre associadas, no imaginário da população, ao trabalho que se realiza em comunidades tradicionalmente vinculadas ao tráfico de drogas, envolvidas com a transgressão e com a violência. Porém, se não há este teor de adrenalina, por outro lado, apresenta-se como história bastante representativa daquilo que vive, em seu cotidiano, o agente redutor de danos.
Toda quinta-feira à noite, eu e mais três colegas deixávamos o Centro de Saúde da Vila dos Comerciários para um plantão que abrange uma parcela considerável do território da Vila Cruzeiro do Sul, bem como as comunidades do Campo da Tuca e do Morro da Cruz. Este trabalho incluía uma série de ações, que iam desde a troca de seringas sujas por limpas até a distribuição de preservativos junto às comunidades visitadas. Neste trabalho, um personagem que cumpre um papel importantíssimo é o parceiro do programa. Trata-se de uma pessoa que, por diferentes razões, apresenta-se como voluntário na multiplicação de ações e informações de Redução de Danos junto a uma parcela específica da comunidade onde está inserido. O parceiro pode ser uma liderança comunitária, uma pessoa que usa drogas, ou até mesmo um pequeno comerciante local. Em uma destas comunidades, uma de nossas parceiras era Regina*.
Regina era uma modesta vendedora de drogas da Vila Piracema**. Chamo-a “vendedora” porque julgo o termo “traficante” pouco apropriado se falamos de Regina. Muito mais vítima do que algoz, ela vendia crack e cocaína como meio de sustentar suas filhas, e também sua dependência. Vítima diante do fato de ser uma mulher pobre em um país machista e desigual, e vítima diante de sua própria condição de dependente de crack. Estas distintas vulnerabilidades – pobreza, condição de gênero e dependência química – alimentavam-se mutuamente, criando uma sinergia de vulnerabilidades que contribuía para que Regina se sentisse uma pessoa sem perspectivas, vivendo um dia depois do outro, sem sonhos nem esperanças.
Quando me tornei redutor, Regina já era parceira do programa havia muito tempo. Portanto, tudo o que posso contar diz respeito tão somente ao período em que pude conviver com ela, nos breves momentos em passávamos na sua casa, toda quinta-feira à noite. Diferente da maioria dos outros parceiros de outras comunidades, Regina nunca nos convidava a entrar em sua casa. Nós a chamávamos; ela deixava a casa e se dirigia até a calçada, onde nos alcançava uma caixa para depósito de lixo hospitalar, recheada de seringadas usadas, e pegava conosco um kit contendo seringas limpas, agulhas, ampolas com água destilada, swabs com álcool, folhetos informativos e preservativos, que seriam disponibilizados às pessoas de seu convívio.
Mas houve uma noite em que as coisas não aconteceram deste jeito. Era cerca de nove horas da noite quando chegamos à casa de Regina, depois de termos passado por algumas outras vilas e visitado alguns outros parceiros. Como sempre, paramos em frente à sua casa, e chamamos seu nome. Esperamos um pouco, até que a vimos aparecer junto à porta de sua casa. Importante dizer que entre a porta e o portão inexistente (o que havia era uma abertura em meio ao muro), existia algo em torno de três metros, e que a casa situava-se abaixo do nível da calçada, de modo que, quando ela apareceu à porta, nós tivemos de olhar para baixo. Regina então fez um sinal, e nos convidou a entrar.
Entramos. O cheiro metálico denunciava que ela havia acabado de fumar uma pedra de crack. Quanto à fisionomia, esta dizia tratar-se de uma droga muito boa. A TV estava ligada em um volume muito alto. Ela nos recebeu na sala, onde havia, além da TV, um sofá de três lugares, e uma poltrona que fazia conjunto com o sofá. Eu sentei-me ao tapete. Quanto aos meus colegas de equipe, um estava na casa de outro parceiro, na mesma rua, enquanto que os outros dois estavam ali comigo: um ocupando a poltrona, e o outro em pé, na porta.
Regina estava muito louca, e passou a falar desorganizada e compulsivamente. Falou sobre seus filhos, e sobre o modo como conseguiu evitar que estes lhe fossem retirados pelo Conselho Tutelar. Falou sobre violência policial, e sobre abuso sexual, nos intimando a responder se achávamos que um homem tinha o direito de passar a mão em uma mulher apenas por ser brigadiano. Falou sobre amigos e amigas que morreram em função da Aids, da droga e da violência. Falou muito, verborragicamente, misturando os assuntos de modo que um tema se transformava em outro repentinamente, para retornar ao ponto original de maneira igualmente repentina logo em seguida. Falou durante muito tempo, misturando sua voz aos reclames que interrompiam de tempos em tempos a novela das oito.
É comum que se ouça de pessoas que atuam no campo do cuidado a pessoas que usam álcool e outras drogas, que se torna impossível realizar uma escuta mais qualificada quando temos à nossa frente uma pessoa sob forte efeito de alguma substância psicoativa. Diz-se que a fala se torna desorganizada, e que não há nenhum ganho, nenhuma possibilidade terapêutica em tal evento. Por outro lado, li certa feita que Jung ficava por horas ouvindo pessoas consideradas absolutamente loucas, buscando identificar algum sentido nas frases aparentemente desconexas proferidas por aqueles sujeitos. Dizia ele que se o terapeuta possuir uma boa cultura geral e alguma sensibilidade, sempre é possível encontrar sentidos. Lembro que eu mesmo, numa visita realizada a Unidade Mário Martins do Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, fiquei por alguns momentos ouvindo uma mulher de cerca de cinqüenta anos que parecia não falar coisa com coisa. Fiquei a ouvindo, até que em determinado momento ela falou na Fazenda Anoni. Uma emoção muito forte tomou conta de mim, quando lhe perguntei se ela tinha trabalhado se ela tinha participado da ocupação promovida pelo MST naquela propriedade, no início dos anos 80. Ela diminuiu a velocidade de sua fala, olhou para mim, e como que por mágica, passou e contar muito calmamente sobre como trabalhava com seus irmãos, e sobre como participava das plenárias do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Foi um momento muito, muito especial.
Voltando à nossa amiga Regina, eu não posso dizer que houve um momento específico em que a interrompi para tomar o sentido de alguma das frases ditas. Até mesmo porque não havia nenhuma necessidade disto: tudo o que ela dizia fazia sentido, e bastava que se aguçasse o ouvido, prestando bastante atenção diante da torrente incessante de palavras que saíam de dentro daquela mulher, para que se compreendesse exatamente de que ela estava falando. Uma multiplicidade imensa de dores, de desesperos, de mágoas, vinha como que num jorro de loucura e raiva, de tristeza e desesperança. Regina falava, e era como se quisesse apenas ouvir a própria voz. Ela não olhava para nenhum de nós; apenas falava, e sua fala era a fala de milhares de mulheres, com suas histórias de violência, abuso e sofrimento. Sua fala era a fala de milhares de pessoas que usam drogas, jogadas na vala comum do preconceito e da incompreensão, demonizadas sob o rótulo homogeneizante que julga a todos traficantes, condenando-os à invisibilidade e à criminalidade. Sua fala era a fala de milhares, e ao mesmo tempo, sua fala era única, porque única era sua dor. Pessoa e intransferível.
Até que parou. Em um determinado momento, talvez para tomar fôlego, ou talvez diante de uma súbita memória ainda mais atroz do que qualquer uma já dita, Regina parou, e pela primeira vez levantou seus olhos procurando algum interlocutor. Encontrou os meus, e houve por um momento uma aura de cumplicidade. Melhor dizendo: de conspiração. Por alguns segundos, respiramos juntos, e sabíamos exatamente o que deveria ser feito. Eu me arrastei para um pouco mais perto do sofá, e peguei sua mão, e ela chorou um choro mudo que fazia com seu corpo tremesse e seu rosto enrugasse. Eu permaneci ali, segurando sua mão, e pensando que o mundo não é um bom lugar para se viver quando se é uma mulher pobre e sensível. Até que depois de algum tempo, ela abriu os olhos, e finalmente derramou algumas lágrimas, crispando os lábios. Eu acariciei sua mão, olhei nos seus olhos e sorri um sorriso que queria dizer: “Ei! Você sabe que nós estamos aqui, não é? Sabe que te entendemos, e que jamais iremos te julgar, não é?”. E ela entendeu (ou pelo menos eu acho que entendeu), e me devolveu um sorriso tímido. Eu acariciei sua mão, e lhe disse que precisávamos ir, pois havia ainda outras áreas e outras pessoas esperando por nós. Ela fez que sim com a cabeça, e sorriu de novo, fungando e esfregando os olhos, secando as lágrimas do rosto. Eu levantei, ela levantou. Abraçamos-nos por algum tempo. Um de meus colegas chegou mais perto e lhe deu um beijo na face, reiterando que na próxima semana estaríamos ali novamente. Ela sorriu, olhou para o chão e agradeceu nossa visita.
Regina ficou parada no meio da sala, enquanto saíamos e íamos embora. Ficou nos olhando, sem nos acompanhar até o portão. Caminhamos todos em silêncio até o furgão que nos esperava para levar-nos até o Campo da Tuca, e depois para o Morro da Cruz. Numa casa, bem próxima de onde estava a camionete que nos trouxera até ali, duas jovens ouviam funk em pleno volume, ensaiando alguns passos. Seguimos em silêncio, e em silêncio entramos no carro. No caminho até a próxima comunidade, eu pensei comigo: nunca fora tão trabalhador de saúde quanto naquele dia.
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