IMPOSTOS EM SÃO PAULO

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

"Auto de Natal"



UM RIO COMO UM PÁSSARO

Para Frei Cappio

Como um pássaro um rio

Como um pássaro um rio viaja.
Como um pássaro ele voa a sua viagem.
Como um pássaro ele voa e vê o mundo
como quem lembra a casa onde mora.
Mas o pássaro pousa quando cansa
e um rio só descansa quando morre.

Alguns sinais do tempo

Às vezes de um lado ou de outro das margens
que me são como as beiras de minhas asas
eu vejo luzes mais do que em outros dias,
e o estrondo com que os povos das cidades
por onde passo, clareiam a noite de suas festas.
Eles celebram o passar dos dias e os seus santos
e contam uma centena do que chamam “um ano”
como se fosse um longo, um incontável tempo.
Como dizer a eles que todo aquele tempo é: agora?

Pois muito antes da era em que chegaram às matas
que vestiam de verdes os caminhos de meu vôo,
os primeiros homens de outras peles, preces, cantos
e outros deuses e motivos de acender fogos e cantar,
já então eu era e deslizava as minhas águas claras
por terras cobertas de verde e vazias de nomes.
Aquilo foi quando os primeiros sinais da vida
deixavam o selo do andar de seres em minhas areias,
e não havia ainda a marca dos pés dos homens.

Foi então quando

Foi então quando as minhas águas ouviram vozes,
e aprendi sem pressa que um outro povo da vida
havia chegado. E foi então um outro tempo.
Vieram de longe os que se cobrem de peles
e edificam de madeira, barro e pedra o lugar
onde fazem o amor e acalentam os filhos.
Entre o tempo das chuvas e o dos ares secos,
quantas águas terei levado do sertão ao sal do mar
até quando chegaram a essas terras os homens
as mulheres e as crias de outros povos.
Os que a mim me deram com as suas falas,
tão diversas do cantar das aves e do vento,
este nome que soa como chuva na palha: Opará?
Convivemos muitas eras como quem navega
e quem acolhe quem aprendeu a navegar.
Eles flutuaram madeiras em minhas águas
e as entre as ilhas de meu leito viajavam sem medo.
Pescavam os meus peixes e os comiam, poucos,
à volta de fogos, falando de frutos e de deuses.
Vinham os seus filhos e mergulhavam em minha água
como quem abre a porta da frente e entra em casa.
Foram eras felizes e pensei que para sempre
eu poderia abrigar os homens como as aves.

Então chegaram outros

Não reconheci como seres da vida, como homens
os que vieram depois e chegaram aqui um dia.
Vinham vestidos de roupas e de estrondos
e calçavam aços com que feriam minhas areias
acostumadas aos pés nus de moças de pela escura
e aos corpos suaves, com que de vez em quando
um homem e uma mulher gemiam de prazer
e depois se lavavam em águas, como um rito.
Os homens de pele clara rasgaram caminhos
e aprenderam a queimar o verde de meus matos
e a lidar comigo como quem doma um inimigo.
O meu nome trocaram por este: São Francisco.
E custei a compreender porque me chamavam
com o nome de um homem de outras falas
que se viesse a mim me tomaria como um irmão.

Foram os tempos do fogo e do desatino.
Grandes barcos ruidosos cortavam o meu silêncio
e o que não cabia em suas casas de ferro e barro
eles atiravam na minha, pois um rio é um vôo e um lar.
E aprenderam com o tempo a reter as minhas águas.
E os sertões por onde viajo viraram grandes lagos,
enquanto as lagoas de minha terceira margem
onde os peixes geravam suas crias e a vida das águas
começaram a secar como um céu do mês de agosto.
Um rio não se doma, eu quis dizer aos novos homens,
mas eles não aprenderam com os povos que mataram
com artifícios de ferros, fogos e de fome,
a calar ante as minhas águas e ouvir a minha voz.

Tudo o que nasce deve morrer um dia.
Uma ave voa e um dia morre e é breve o seu vôo.
Voa um rio um tempo que nem mesmo os deuses contam
E eu imaginava navegar as minhas águas
e as águas dos rios que chegam comigo ao mar
por muitos dias e muitas eras de sol e chuva ainda.

Mas entre as pedras eu sinto que me findo aos poucos
entre cada janeiro de minhas águas cheias
e os julhos frios dos meu dias secos.
E os que me tratam com o furor de máquinas
como quem veio até mim em sua guerra
querem agora fazer de meu leito rios de finge.
Águas de mentira roubadas de meu vôo
e levadas do seco ao que é mais seco ainda.

Como dizer aos homens agora?

Como dizer aos que mentem a mim e aos outros,
que se há tantas mulheres tristes e meninas magras
aos dois lados de meu caminho noite adentro,
como esperar que de um rio cavado a esmo
haja no deserto farturas de vida, trigo e uvas?
Aprendi com o tempo e o passar dos homens
que quando há fome entre os povos que me cercam
não é porque a terra e as águas sejam avarentas.
Outros povos viveram aqui e a todos eu nutri
e assim também as terras virgens do sertão,
como um pai nutre um filho, e um irmão a outro irmão.
Se há fome, é porque alguns roubam o que é de todos:
minha vida, os meus peixes, minhas águas e meu vôo.

Um rio se ama e não se doma, como não se pára um vôo
a não ser com a arma que fere a ave e mata o vôo.
Vivo ainda, e entre os barros e os azuis de meus dias
espero que venha de novo o dia em que o verde
e o frescor da vida das árvores de mil nomes
repovoe de flores, de frutas e de bichos
os dois lados do caminho por onde eu vou ao mar.

Vivo de saber do amor daqueles a quem amo
e que imagino serem como o homem, Francisco,
que cantava o sol e o vento, a água e a fêmea,
e que com as mãos nuas beberia de minhas águas
e também a mim, um rio, me chamaria: irmão.

Noite de Natal em 2008
Carlos Rodrigues Brandão

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